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Os dois filhos dela cometeram suicídio: "Inevitável não se sentir culpada"

Guta com os filhos Davi (esq), Eva e Felipe - Arquivo pessoal
Guta com os filhos Davi (esq), Eva e Felipe Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

24/10/2019 04h00

Os dois filhos adolescentes de Guta Alencar tiraram a própria vida, da mesma forma, num intervalo de três anos. O sentimento de culpa por não ter feito algo a mais é o primeiro que vem à mente de toda mãe nessa situação, ela explica para Universa. É o único tipo de morte, diz, em que não dá para "acusar" algo ou alguém. "Nas outras, dá para culpar a doença, o acidente..."

Mãe ainda de uma menina de cinco anos, a gerente administrativa, moradora de Juazeiro do Norte (CE) diz que vive o mesmo lema de alguém que tenta se recuperar de algum vício: "um dia de cada vez". E hoje conversa —presencialmente ou por telefone— com outras famílias que vivem dramas semelhantes para ajudá-las a enfrentar a situação. Ela conta como o faz neste relato.

"Conheci o pai dos meus filhos com 21 anos. Era muito inexperiente, e terminamos quando estava grávida do meu segundo filho, o Davi. Ele registrou os meninos, mas os criei com a ajuda da minha mãe e meus irmãos.

Meu pai era um homem violento e abusivo, então tive que sair de casa bem cedo para fugir dessa violência. Em 2001, tirei minha mãe e meus irmãos de casa, e fomos todos morar juntos. No ano seguinte, conheci meu marido Máximo, pai de minha filha Eva, que hoje tem 5 anos. Ele também me ajudou a criar meus filhos.

Meu pai cometeu suicídio em 2004, no Dia dos Pais. Meus filhos não conviveram com o avô, mas sabiam da relação abusiva que tinha comigo e com meus irmãos. Como não recebi carinho em casa, dei aos meus filhos tudo que não pude ter. Éramos muito unidos, e eu me considero uma mãe cuidadosa. Os amigos dos meus filhos até brincavam, dizendo que queriam que eu fosse a mãe deles.

Somos uma família cristã e meu mais velho, Felipe, era muito dedicado à igreja, tocava violino, dava aula de música, participava de todas as atividades. Aos 15 anos, ele se apaixonou por uma moça da mesma igreja, cinco anos mais velha. Por causa da idade, a mãe dela não a deixou namorar. Mas os dois viviam juntos e eu ajudei no que pude, inclusive o levava para se encontrar com ela. Essa situação deixava meu filho muito triste.

suicídio - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Os irmãos Felipe e Davi eram muito amigos
Imagem: Arquivo pessoal

Lembro até hoje da data: em 17 de junho de 2016, a mãe da moça deixou que ela namorasse com meu filho, mas tinha muitas restrições. Eles não podiam, por exemplo, sair sozinhos, nem se ver na hora que queriam. Então começaram a brigar.

Felipe não tinha depressão. Era um menino cheio de vida, queria ser obstetra, estava no segundo ano do ensino médio, vivia estudando. No dia 14 de julho daquele ano, saí para trabalhar, e por volta das 13h ele me disse, por mensagem, que queria comprar um tênis naquela semana, então combinamos de ir no sábado.

Ele ia começar a malhar naquela semana. A pessoa que planeja se matar não combina uma coisa dessa, entende?

Logo após a mensagem, o meu outro filho, Davi, me ligou avisando que o Felipe tinha saído e deixado o celular e a chave em casa. Achamos estranho e imaginei que ele tivesse ido à casa da namorada. Liguei então para ela e pedi que me ligasse assim que ele chegasse.

A primeira perda

Eram 16h quando meu coração apertou. Foi nesse exato momento que meu filho se matou, aos 16 anos: ele não tinha saído de casa. Ficou escondido, esperando o irmão sair para cometer o suicídio. Meu marido o encontrou. Depois, vimos que ele e a namorada tinham discutido por mensagem de aplicativo, e ela sugeriu que queria terminar o relacionamento, mas pessoalmente. A última mensagem dele foi: "Vou sofrer, mas...". Ele não deixou carta.

Saímos daquela casa e fui morar com a minha sogra. Não retornamos mais. Eu e Davi entramos em depressão e passamos a ter acompanhamento psiquiátrico. Depois fui entender: além de perder o irmão, ele sentia culpa. A namorada do Felipe tinha pedido para ele conferir se o irmão não estava mesmo em casa, mas ele não foi olhar. Confiou que o Felipe realmente tinha saído.

Em fevereiro deste ano, o Davi foi estudar em Sobral, onde tem faculdade pública. Ele foi para a casa de amigos para se preparar para o vestibular. Queria fazer psicologia. Para mim, essa mudança faria bem. E fez. Ele começou a namorar, mas em maio pediu para se consultar com um psiquiatra novamente. Recuperei mensagens dele para a namorada falando que não estava bem, mas não queria preocupar ninguém. Ele ligou para o CVV (Centro de Valorização da Vida), mas tinha 17 pessoas na fila de espera e desistiu.

A segunda perda

Davi foi encontrado no quarto da casa onde morava, da mesma maneira que Felipe, na madrugada de 28 de junho deste ano. Tinha 18 anos.

É inevitável não se sentir culpada. Perder um filho é trágico demais, ainda mais por suicídio. Quando é por doença, você culpa essa doença. Quando é acidente ou assalto, a mesma coisa: você culpa o outro. Você tem a necessidade de culpar alguém. Mas, quando é suicídio, você pensa: 'O que foi que eu fiz?'.

Nunca culpei Deus nem a namorada do meu filho. Não adianta remoer. A principal luta de uma mãe que perde um filho é abstrair o sentimento de culpa. Não é fácil. Você tem recaídas. Já pensei em tirar a minha vida e tem dias em que não saio da cama. É normal. Sigo o lema "só por hoje". A fé em Deus é o ingrediente fundamental e necessário para seguir em frente. Mas ter acompanhamento psiquiátrico e o apoio da família também.

Também não tem essa história de "ah, você tem outro filho, tem que pensar nela". Você pode ter 50 filhos, cada um é único. A perda é irreparável.

Já ouvi que meus filhos foram egoístas, não pensaram no meu sofrimento. Só quem sabia o que estavam sentindo eram eles. Precisamos respeitar a decisão dos nossos filhos.

Seguir em frente dói demais. Seria mais fácil ficar com meus filhos agora, apressar esse encontro. Mas tem muito jovem precisando de ajuda e é isso que estou fazendo. Só na minha cidade, neste ano, quatro se mataram. Por isso, criei um projeto, Amor em domicílio, em que vou ao encontro de mães que estejam passando pelo mesmo problema. Também atendo por Skype. Estou tentando conseguir atendimento psicológico gratuito para elas também.

É comum culpar a falta de tempo dos pais, a internet, para explicar a fragilidade dos jovens. Mas não é isso. Eu tive tempo para eles e eles me deixaram. Não é culpa de ninguém."