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Ela era catadora de latinhas e virou escritora: "Sonho é para se realizar"

Débora usa uma capa de latinhas em todas as suas apresentações - Acervo pessoal
Débora usa uma capa de latinhas em todas as suas apresentações Imagem: Acervo pessoal

Roseane Santos

Colaboração para Universa

21/10/2019 04h00

A ex-catadora de latinhas, Débora Moreno, de 44 anos, sempre se imaginou autografando o próprio livro. O sonho se realizou em setembro, durante a XIX Bienal do Livro, quando ela assinou os exemplares da obra "Lolita Braço de Fita".

Era um desejo de criança ser escritora, mesmo vivendo na pobreza em uma comunidade de Niterói, no Rio de Janeiro. E ela não esconde o brilho nos olhos ao contar que foi com o dinheiro da reciclagem que criou sozinha o filho Alex Moreno, que hoje tem 24 anos e é graduado em Logística.

Desde que começou a escrever, em 2010, passou a ser convidada para palestras em escolas públicas, festas e até em presídios. Nas apresentações, Débora sempre veste uma capa feita com quase 900 latinhas, para homenagear quem ainda exerce a profissão. Confira seu relato:

Infância conturbada

"Cresci vendo a minha mãe passar por muitas dificuldades financeiras. Éramos três filhos e meu pai vivia desempregado. Ela trabalhava em casa de família e, naquela época, não tinha essa coisa de salário mínimo. A empregada ganhava o que combinava com o patrão. Quando eu completei 6 anos decidi ajudá-la: sem que ela soubesse, comecei a catar coisas na rua e vender para um ferro-velho perto de casa.

Eu queria comprar pelo menos o leite ou o pão que nem sempre conseguíamos ter no café da manhã. Via uma panela quebrada, pegava, trocava e com o dinheiro eu entrava direto na padaria. Comecei fazendo isso escondido, mas quando ela descobriu, não proibiu. A pobreza era muita. Qualquer ajuda seria bem-vinda".

Desejo imediato

"Nesta mesma época, mais precisamente aos 7 anos, mesmo no meio de toda falta de estrutura, um sonho nasceu em mim. Mesmo sem saber o que estava fazendo, escrevi minha primeira poesia. Lembro que na ocasião, fui a um passeio de escola e conheci uma feira literária. Nossa, fiquei encantada. Nunca esqueço de um livro feito de pano, com a capa dura que achei maravilhoso. Não parei de olhar e imaginar que um dia poderia escrever um também, tão bonito quanto aquele.

Ainda que o dinheiro fosse curto, nunca parei de estudar. Aos 14 anos, uma professora adorou uma redação que fiz. O tema era "primavera" e ela, que tinha fama de brava, olhou e sorriu para mim depois que leu o que escrevi. Pensei então que as minhas palavras poderiam causar sensações boas nas pessoas, que poderiam fazer a diferença na vida de alguém. O tempo foi passando, continuei catando ferro para reciclar e comecei a pegar latinhas, que davam um dinheirinho a mais".

Determinação na vida adulta

"Aos 27 anos, desta vez de forma consciente, escrevi o poema "Estrela" e desde então nunca mais parei. Reunia todos os versos em folhas de caderno e fazia uma capa de papelão, imitando um livro de verdade. Pensando sempre que um dia publicaria o que escrevia: este era um pensamento que não me abandonava. Nesta época também fazia faxinas, mas no fundo sabia que o que fazia era passageiro, o meu destino era ser escritora.

Aos 32 anos, tomei uma decisão. Passei a economizar para publicar meu primeiro livro. Qualquer dinheiro extra da reciclagem eu separava para realizar meu sonho. Fiquei fazendo isso por três anos. Consegui aos 35 anos ter minha primeira obra publicada, chamada "Sapatos do Tempo". O título foi inspirado em uma frase do meu único filho. Eu tinha muito cuidado com os sapatos dele, porque eu mesma tive poucos para calçar. Um dia ele olhou para mim e disse. "Vai ter um tempo que vou trabalhar e comprar tantos sapatos para você que nem vai conseguir usar todos".

De lá pra cá

Depois disso, não parei mais. Com o dinheiro das vendas de um livro, eu economizava dinheiro para publicar outro. Aos 44 anos, tenho nove obras publicadas. Comecei também a dar palestras de motivação para as crianças nas escolas. Há 17 anos, criei o projeto "Um pingo vira poesia", no qual leio versos com o objetivo de levar uma mensagem positiva e peço sempre para as pessoas não desistirem.

Resolvi fazer uma capa de latinhas para me apresentar em homenagem aos catadores que até hoje sobrevivem dessa função. Atualmente, tiro meu sustento da venda de livros, das apresentações em eventos e da fabricação de bonecas de pano negras.

A obra Lolita Braço de Fita, escrita por Débora - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Imagem: Acervo pessoal

Lolita Braço de Fita é a história de superação de uma menina. É o meu primeiro livro infantil, a realização de um desejo antigo. Sempre quis fazer algo totalmente voltado para as crianças. Só que a produção de uma obra infantil é mais cara, por muitos motivos, inclusive por conta das ilustrações. Mas quem disse que eu iria desistir? Sonho é para ser realizado. Podem escrever aí: antes dos 50 anos, vou ter meu diploma de nível superior".