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Tia perde 2 sobrinhos por transfobia em 2 anos na mesma rua: "impune"

Petherson e Lorena (foto) foram mortos após episódios de transfobia - Reprodução
Petherson e Lorena (foto) foram mortos após episódios de transfobia Imagem: Reprodução

Marcos Candido e Mariana Gonzalez

De Universa e UOL, em São Paulo

19/10/2019 04h01Atualizada em 04/11/2019 18h05

A transfobia maculou a família de Lorena Vicente, 23, assassinada na segunda-feira (14) em crim sob suspeita de intolerância. Há dois anos, o irmão dela, Petherson dos Santos, também foi assassinado ao tentar defendê-la de ofensas transfóbicas. Restou viva apenas uma irmã, que prefere não revelar o nome ou dar entrevista. "Não tenho mais condições de conversar. Estou vivendo sob calmantes", escreveu ela em uma mensagem para Universa.

Nesta sexta (18), a irmã enterrou o corpo de Lorena em um cemitério na zona sul de São Paulo. Ativistas LGBTs e a família defendem que o homicídio foi motivado por transfobia. A polícia de São Paulo afirma que o suspeito, um lutador de identidade conhecida, continua foragido.

Segundo família e professores, Lorena nutria dedicação aos estudos. Na escola, a identidade de gênero foi um alvo persistente do bullying durante a adolescência. Antes de se concluir o ensino médio, abandonou a escola e só pode retomá-la na vida adulta. Antes de ser assassinada, ela sonhava em ser médica. Gostava de cantar e conseguiu unir um pequeno grupo de colegas na Escola Estadual Reverendo Jacques, onde cursava o EJA (Educação de Jovens e Adultos). O bairro onde estudava, o Parque Santo Antônio, é um dos mais pobres da zona sul de São Paulo.

Confortável no novo círculo de amizade, Lorena decidiu participar de um sarau apresentado no colégio. Na ocasião, cantou "Não deixe o samba morrer", sucesso na voz da cantora Alcione, e passou a ser amada entre os colegas. Nesta semana, não se ouviu mais samba nos corredores do colégio.

Amigos organizaram um misto de protesto com homenagem à memória de Lorena, que morreu com outro nome. O boletim de ocorrência com o registro da morte não usa o nome social e verdadeiro dela, mas o que lhe foi dado ao nascer em um gênero ao qual ela nunca pertenceu. Um nome composto, formado por dois nomes masculinos pelo qual não gostava de ser chamada.

Lorena participa de apresentação

Já Petherson trabalhava como feirante e vendia frutas de porta em porta, de acordo com Janete, tia das vítimas. Participava de festas comunitárias no bairro. Em 2017, trabalhava com o pai em uma barraca de feira quando ouviu ofensas lançadas por um homem contra Lorena. Ele tentou defendê-la, mas foi interceptado por um soco no rosto e morreu. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, o suspeito pela morte de Petherson foi indiciado pelo crime, mas não há informações sobre a prisão.

Infância

A tia diz que a infância dos irmãos foi difícil. Os três foram abandonados pela mãe após a separação. "Meu irmão está arrasado. Quando Petherson morreu, nossa mãe tinha acabado de falecer. Agora, mais uma morte. Ele diz que seria melhor ele estar morto também. Mas digo para levantar a cabeça e continuar", diz a tia.

O local onde os dois nasceram e cresceram foi o mesmo onde foram mortos: uma pequena praça na avenida Fim de Semana, local que simboliza a banalização da violência nas periferias das grandes cidades e da intolerância contra LGBTs no país.

A estudante Lorena Vicente, de 23 anos, em entrevista concedida em 2017 - Reprodução/TV Globo - Reprodução/TV Globo
A estudante Lorena Vicente, de 23 anos, em entrevista concedida em 2017
Imagem: Reprodução/TV Globo

"Estou nesta escola há 22 anos e não aguento mais ver aluno meu enterrado", desabafa o professor de história de Lorena, Severino Honorato. "Nós, professores, quando perdemos um aluno sentimos que um pedaço nosso morre. O caso da Lorena é especial, ela era uma pessoa invisível para a sociedade, viveu momentos muito difíceis. A gente quer salvar esses alunos com educação e com o nosso carinho, mas não conseguimos salvar a Lorena". Enturmada, ela havia comemorado o último aniversário em sala de aula.

A família afirma que a agressão contra Lorena começou quando adolescentes passaram mal ao usar lança-perfume na praça do bairro e foram socorridas pela vítima. O suspeito pelo homicídio, que seria um tio das adolescentes, chegou ao local, acusou Lorena de ter facilitado o acesso à droga e deu socos contra o rosto dela. Os parentes negam a versão oferecida pela família do agressor dada à imprensa. Os familiares de Lorena afirmam que o agressor conhecia e já não gostava de Lorena.

Neste sábado (19), ativistas LGBTs organizam um novo protesto para pedir Justiça pela morte de Lorena em frente ao cemitério São Luiz, que demarca o final da avenida Fim de Semana. "Esperamos que não fique impune. Muitos casos ficam esquecidos. Esperamos que a morte de Lorena não seja em vão", diz a tia.

Colaborou Natália Eiras, de Universa