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Trans e cadeirante: "Parece inaceitável mulher com deficiência ter vaidade"

Leandrinha Du Art - Matheus Alves
Leandrinha Du Art Imagem: Matheus Alves

Manuela Aquino

Colaboração para Universa

05/10/2019 04h00

Leandrinha Du Art, 24 anos, assistente parlamentar, diz que nasceu ativista. Conhecendo a história dela, a afirmação faz todo sentido. A mineira nasceu menino e com síndrome de Larsen, uma má formação nos ossos. Como pessoa com deficiência, começou sua luta por acessibilidade e aceitação na escola.

Depois, rompeu com sua criação dentro da igreja para se assumir gay e, em seguida, se descobriu trans. Como uma mulher trans e cadeirante passou a ser voz e a dar voz como ativista das causas LGBT e das pessoas com deficiência.

Começou pelas redes sociais, onde publicava sua rotina, reivindicava direitos, fazia questionamentos e divulgava contos eróticos. Com a repercussão de sua página, pegou a estrada para participar de rodas de conversa sobre visibilidade, acessibilidade e preconceito. Em uma das suas viagens, para São Paulo, gravou um vídeo contando sua história, que viralizou. Isso foi dois anos atrás. Hoje, ela se dedica ao ativismo enquanto cursa faculdade de teologia.

"Sou de Passos, uma cidade no interior de Minas Gerais. Nasci com síndrome de Larsen, e minha maior dificuldade por muito tempo foi me aceitar dentro de um corpo deficiente e torto. Isso me machucou muito. Passei boa parte da minha infância em hospitais. No total, já fiz mais de 24 procedimentos cirúrgicos. Dos 6 aos 11 anos, praticamente, fiquei internada ou viajando para São Paulo para tratamento. Era como se eu vivesse em uma bolha, sendo bem tratada, em um ambiente adulto que me respeitava. Até que voltei para a escola e descobri que o mundo é uma desgraça. Passei a conviver com crianças da minha idade que eram bem cruéis. E foi justamente uma experiência na escola que mudou minha vida e me fez ver meu corpo de uma maneira totalmente diferente.

Satisfeita com a minha deficiência

Frequentei a igreja católica e depois a evangélica. Aos 17 anos, rompi com a religião, que eu achava muito machista e patriarcal. A partir dali, passei a explorar minha sexualidade. Claro que já notava que tinha atração por meninos, mas achava que era errado e cheguei até a rezar para Deus me libertar.

Ainda bem que consegui perceber que não era certo ter o aval de uma força divina e me desprendi de qualquer amarra. Não gosto de dar crédito para macho. Mas, nesse caso, preciso, pois um amigo de classe mudou minha vida. Somos amigos até hoje.

Eu vivia escondendo meu corpo com roupas largas e não via nada atrativo em mim. Um dia, fui surpreendida por ele no banheiro. Ele pediu um beijo, eu disse que sim. Me pegou no colo, me colocou em cima da pia e nos beijamos muito. O cara mais lindo da escola estava a fim de mim e aquele momento foi um divisor de águas. No mesmo dia, fomos até o banheiro de um clube, onde transei pela primeira vez. Foi maravilhoso.

A partir daquele momento, percebi que eu poderia ser atraente e que poderia pegar quem eu quisesse. Contei para minha família que eu era gay, e minha mãe disse que já sabia. Demorou um mês para eu me entender como mulher trans. Eu olhava aquele corpo, que poderia parecer monstruoso para muitas pessoas, e estava satisfeita com a minha deficiência, mas percebi que meu gênero me incomodava muito.

Quando contei para minha mãe e para minha avó que eu era mulher, a gente colocou todas as roupas no chão e fizemos um guarda-roupa novo, elas me ajudaram. Sou muito privilegiada, tenho uma família que me ama, que nunca me rejeitou nem me abandonou. Na fase de transição, tentei fazer tratamento hormonal, mas desisti, pois os efeitos colaterais me prejudicavam. Eu chorava à toa, parecia que estava ficando louca.

Percebi que buscava um padrão de perfeição que há dentro da comunidade trans. É uma cobrança em ser linda, ter bunda e peitos enormes. E fui conduzida à terapia hormonal por isso. Pensei: 'Já enfrentei tanta coisa e agora estou tentando me enquadrar?' Não dava.

Como mulher, me sinto plena. Ser mulher é poderoso, é um ato de uma coragem e tanto. Foi revolucionário, passei a usar roupas justas, a mostrar meus braços. Parece inconcebível para a sociedade uma mulher com deficiência ter vaidade. Eu colocava minha maquiagem Mary Kay, um salto babadeiro e saía linda, como faço até hoje. Foi uma época libertadora. Minha adolescência foi, então, um período de muita atividade sexual. Conseguia chegar nas pessoas e ficava com quem eu queria. A conquista ia além do meu corpo, era minha atitude, como eu me impunha. Eu pensava: 'Sou sexy e gostosa pra caramba'.

Ativista desde o berço

Falo que comecei a militância nascendo. Na escola, eu era a terrorista das manifestações, fazia abaixo-assinado, lutava para ter rampas e acessibilidade. Hoje, tenho outras prioridades. A geração dos anos 80 e 90 batia muito na tecla do corrimão e da rampa. Não tenho tempo e não quero falar sobre isso. Quero debater outros assuntos, como uso da maconha medicinal, sexo, direito reprodutivo e empregabilidade.

Como pessoa trans bem resolvida, passei a falar nas redes sociais sobre minha deficiência, autoestima e sexualidade. Também publicava contos eróticos, baseados nas experiências que eu tinha. Havia um nicho de adolescentes na minha cidade que se identificava comigo. Eu era a Beyoncé de Passos e essas histórias tiveram muita repercussão. Imagine uma cidade que parece cenografia de novela antiga? Como se eu fosse a Dercy Gonçalves em "Sinhá Moça".

Passei a ser convidada por ONGs e instituições para fazer palestras e rodas de conversa esporadicamente. Em 2017, tudo mudou. Estava em São Paulo e fiz um vídeo no Centro Cultural São Paulo, em que contava um pouco da minha história, e o vídeo viralizou. Dois milhões de visualizações. Minha página no Facebook passou a ter mais de dez mil curtidas de uma hora para outra. Agora, são mais de 58 mil.

Nas eleições passadas me candidatei à deputada federal pelo PSOL. Hoje, não me interesso em me candidatar. Ser político não é ser parlamentar e acho que consigo ter mais autonomia fora.

Me dói muito falar isso, pois sou de esquerda, mas a pauta das pessoas com deficiência não é, a meu ver, uma pauta da esquerda, e sim da direita. É muito ruim quando passa pela minha cabeça se eu não me deveria aliar a eles para poder dialogar sobre mudanças.

Continuo fazendo palestras e atualmente moro em Belo Horizonte com meu namorado, onde faço faculdade de teologia. Fundei o Projeto Galeria no Instagram, com a @galeriapcd, que tem como intuito reunir corpos com deficiência das mais variadas formas. Também está no ar a @galeriatrans, que tem como objetivo dar visibilidade a nós. Sinto que tenho essa responsabilidade com as mulheres, todas, com ou sem deficiência."