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Professora cria serviço de entregas com bikes feito só por mulheres e trans

Señoritas Courier é serviço de entregas feito por mulheres e trans - Divulgação
Señoritas Courier é serviço de entregas feito por mulheres e trans Imagem: Divulgação

Cláudia de Castro Lima

Colaboração para Universa

30/09/2019 04h00

Aline Os se lembra perfeitamente da manhã em que subiu em uma bicicleta. Ela tinha seis anos e morava em Francisco Morato, na Grande São Paulo. Sentiu-se tão confiante que, no mesmo dia, resolveu andar sem as mãos.

"Caí num monte de brita", ela conta, rindo. "Tenho cicatrizes até hoje no joelho e no pé." O que Aline carrega até hoje também dessa experiência foi o jeito que se sentiu quando estava sobre a bicicleta. "Ela me escolheu desde esse primeiro dia. Caí e vi que continuava bem. Nada mais me assustaria."

A bike teria um papel central na vida da garotinha, hoje dona do Señoritas Courier, um serviço de entregas de bicicleta feito apenas por mulheres e pessoas trans. Mas o caminho seria longo até lá.

Em 2014, a bacharel em artes visuais pela Universidade de São Paulo criou seu primeiro empreendimento, o Selim Cultural, um passeio de bike pela capital paulistana contando histórias e mostrando vários aspectos culturais dela. Aline e vários amigos levavam as pessoas interessadas para essas imersões por São Paulo voluntariamente.

Mas, em 2015, tudo mudou. Depois de dez anos de relacionamento, ela e o marido se separaram. O divórcio foi traumático e levou Aline para o fundo do poço. Porque queria ter um filho, Aline havia diminuído sua carga horária de trabalho como professora de uma universidade particular em São Paulo. "Percebi que, como eu estava piorando, também não era em sala de aula que eu queria ficar mais."

Um dia, ao sair da sessão de terapia, viu um entregador passando de bicicleta. "No impulso, parei o garoto, perguntei se aquilo dava dinheiro. Ele disse que dava pelo menos um salário. Pensei que, juntando o salário da faculdade com aquele, eu conseguiria segurar as pontas."

Professora e entregadora

A professora encontrou uma empresa de bike-delivery que contratava freelancers, já que tinha os horários das aulas comprometidos, e foi trabalhar como entregadora, pedalando cerca de 90 quilômetros por dia.

Não foi fácil para quem convivia com ela entender com uma professora universitária resolveu trabalhar de entregadora. "Minha mãe mesmo dizia: 'Estudou tanto para isso?' E eu sempre soube que a bicicleta era a solução para isso. Ela me tirou da depressão e me tira sempre que estou nessa situação."

A mãe também tinha medo de ver a filha pedalando pela cidade, que não é lá muito amigável com os ciclistas. "Falei para ela: 'O combinado é não morrer'. E pedalo com toda a segurança."

Pouco mais de um ano depois, Aline conseguiu um trabalho no estúdio do renomado fotógrafo Bob Wolfenson. Ao mesmo tempo, começou a namorar seu chefe na empresa de bike-logística e os dois passaram a pensar em ter um negócio próprio.

"Num papo com ele, eu falei que, se eu montasse uma empresa assim, queria ter como parceiras só mulheres e pessoas LGBTQs", ela diz. "Minha irmã é mãe solo e morou comigo um tempo. Via que ela estava com dificuldade de se recolocar no mercado por ser mãe. O mesmo acontecia com meus amigos LGTBQs, que sempre me diziam que, em entrevistas de emprego, acabavam sendo preteridos. Alguém tinha que pensar nessas pessoas."

Segundo Aline, o ambiente das empresas de delivery de bicicleta não é muito confortável para mulheres e a comunidade LGBTQ. "Eles são masculinizados. O homem sempre olha para a mulher ou para o gay pensando que não vão dar conta de pedalar tanto ou de consertar a bike se necessário."

Pressa, pra quê?

O plano saiu do papel por acaso. No estúdio de Bob Wolfenson, Aline quis assumir também as entregas, além do acervo e da pesquisa fotográfica. "Gosto de fazer entregas. Primeiro por causa da prática de exercício. Depois porque, quando se começa a experimentar a cidade de bicicleta, você tem uma outra experiência com ela. São Paulo não é feia. É cheia de recortes e segredos que, de cima da bike, você percebe muito mais."

Um dia, no estúdio, pediram que ela fizesse uma entrega que, por causa do horário, não conseguiria fazer. Aline recorreu ao Facebook para dizer que gostaria de conhecer alguma mulher que desse conta de fazer entregas que ela não podia realizar. "Para minha surpresa, umas dez amigas responderam que fariam."

Ela, então, abriu um grupo no WhatsApp, que batizou de Señoritas Courier. "Um foi acrescentando o outro e, quando vi, havia 21 mulheres e LGBTQs." As entregas foram aparecendo e ela as distribuía entre os membros do grupo. "Mas ainda falta uma coisa: um aplicativo, uma forma de integrar os meus parceiros com os clientes."

O Señoritas Courier acabou de completar um ano. Aline considera o surgimento do grupo no WhatsApp como a data de fundação do serviço: 21 de setembro de 2018. O volume de delivery ainda é pequeno - o maior e mais assíduo cliente hoje é o Estúdio Bob Wolfenson, que demanda entregas de documentos.

Os 21 bikers (são dois não-binários, um homem trans e 18 mulheres) também fazem entregas de flores e de pequenos volumes, quaisquer que sejam eles. A criadora da empresa diz que há possibilidade de carregar volumes maiores, mas é preciso marcar com antecedência. As Señoritas Courier atendem toda a cidade de São Paulo e fazem delivery também para cidades da Grande São Paulo.

Hoje, o Señoritas ainda é, nas palavras de sua criadora, um "coletivo informal em fase de procura por investidores". Aline calcula que precise de R$ 100 mil para contratar pessoal e desenvolver o app. Por enquanto, as entregas são agendadas via Instagram ou Facebook. São 21 entregadores, que ficam com 70% do valor cobrado, algo em torno de R$ 3 por quilômetro.

"Com o aplicativo, vou poder abranger muito mais mulheres, gays e trans. E remunerar melhor essas pessoas. Quero valorizar esses profissionais e quero mais mulheres pedalando nas ruas. Tem um mercado de entregas que movimenta milhões em São Paulo, e uma parte desse valor pode ser destinado para um nicho onde estão as mulheres."

Aline conta também que pretende, com o Señoritas Courier, fazer com que as urgências sejam revistas. "Se a pessoa me ligar e quiser a entrega em meia hora, eu digo que vou tentar. E de fato tento. Mas a ideia é que os clientes agendem as entregas. Não quero colocar meu biker em risco e é isso que fazemos toda vez que dizemos que algo é urgente."

Ter uma fonte de renda e conhecer melhor a cidade são algumas das vantagens em ser courier, segundo Laís Aguiar, que já usava a bicicleta como meio de transporte quando a amiga Aline a convidou a se juntar ao grupo das Señoritas. "Se no caminho vejo alguma coisa que parece legal, como um museu ou até uma padaria para tomar um café, acabo voltando. E é sempre uma surpresa boa fazer uma entrega para alguém muito gentil. O dia fica melhor."

Pedalar em São Paulo é uma das coisas que ela mais gosta de fazer atualmente. "É libertador. Me faz interagir mais com as pessoas."

Sócio de uma produtora, o diretor de vídeo George Queiroz é cliente da Señoritas há alguns meses. "Sou ciclista e há algum tempo queria trocar os serviços de motoboy pelo de bike courier", afirma ele. "A proposta da Aline era perfeita por somar uma preocupação ambiental, que é a troca da moto poluente pela bicicleta, com a preocupação social de trabalhar com uma equipe de perfil novo. Sempre tive ótimas experiências com todas elas."