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Jovem sacrificou vida para que iranianas possam, um dia, amar o futebol

A torcida do Esteghlal - Getty Images
A torcida do Esteghlal Imagem: Getty Images

Maria Carolina Trevisan

Colaboração para Universa

12/09/2019 04h00

Sahar Khodayari, 30 anos, era fã do Esteghlal Football Club, principal time de Teerã, capital do Irã. Gostava tanto da equipe de futebol que era conhecida como "Blue Girl" (Garota Azul), por se vestir com a cor de seu time. Como a presença de mulheres em estádios para assistir a jogos de futebol masculino está proibida desde 1981, no dia 12 de março, Sahar se disfarçou de homem, botou uma peruca azul, um casaco azul longo e foi ao estádio ver a partida entre o Esteghlal e o Al Ain, equipe dos Emirados Árabes, na Copa Asiática da Federação Asiática de Futebol (AFC).

Na entrada, durante a revista, os seguranças descobriram sua identidade. Foi retirada do estádio e levada para Shahr-e Rey, prisão em que estão outras mulheres defensoras de direitos humanos. Nesse presídio, há denúncias de maus tratos como alimentos inadequados, oferecidos com água salgada para beber. "Parece que as autoridades iranianas estão deliberadamente submetendo as presas a tratamento cruel, desumano e degradante por causa de seu ativismo e trabalho com direitos humanos mesmo atrás das grades", disse Philip Luther, pesquisador e diretor de advocacy da Anistia Internacional para o Oriente Médio e Norte da África. O presídio está lotado e em péssimas condições higiênicas.

Dois dias depois, Sahar foi libertada sob fiança. Na semana passada, ao saber que poderia ser condenada a pena de seis meses a dois anos de prisão, a jovem ativista ateou fogo em si mesma. Teve 90% do corpo queimado. Em 9 de setembro, não resistiu e morreu.

"A morte da #blue_girl do Irã, uma mulher que se incendiou porque pensou que teria que ir para a prisão por tentar entrar em um estádio, é uma tragédia sem sentido causada por uma política estatal discriminatória que proíbe mulheres em estádios", publicou a Anistia Internacional no Irã.

Proibidas desde 1981

Blue Girl não foi a primeira mulher iraniana a se vestir de homem para conseguir entrar em um estádio de futebol. Em agosto, quatro mulheres foram presas ao tentar entrar em estádios. Há 38 anos, mulheres estão banidas desse espaço. É uma medida adotada após a Revolução Iraniana, no regime do aiatolá Khomeini, que acabou com o que o regime chamou de "práticas e costumes ocidentais". As restrições foram impostas principalmente às mulheres, que passaram também a ser obrigadas a usar o hijab (tecido que cobre o cabelo). Oficialmente, a prisão de Sahar foi registrada como "uso impróprio do hijab" e "insulto a policiais".

A jovem iraniana, formada em ciências da computação, sacrificou a própria vida para que outras meninas possam, um dia, amar o futebol e ter liberdade. Sua morte chamou a atenção do mundo. "A trágica detenção de Sahar, sua prisão e tentativa de suicídio ressaltam a necessidade de o Irã pôr fim à proibição de mulheres de assistir a jogos esportivos -e a urgência de órgãos reguladores como a Fifa aplicarem suas próprias regras de direitos humanos", afirma um comunicado da Human Rights Watch.

O Irã tem sido pressionado pela Fifa a permitir a entrada de mulheres nos estádios. A entidade proíbe discriminação de gênero em suas competições - ainda que violações mais brandas aconteçam constantemente nos estádios. O governo iraniano garantiu que mulheres poderão participar dos jogos de qualificação para a Copa do Mundo de 2022, que ocorrerá em outubro.

Mas as ativistas querem que a entidade assegure o acesso de mulheres em todos os jogos e não apenas nas partidas da Copa do Mundo. O ex-jogador Ali Karimi é um defensor do fim da proibição das mulheres em estádios. Ele pede que os iranianos boicotem os jogos em protesto pela morte de Sahar.

Masoud Shojaei, capitão da seleção iraniana de futebol, disse no Instagram que a proibição está "enraizada em pensamentos desatualizados e dignos de constrangimento que não serão compreendidos pelas gerações futuras". O jogador do Esteghlal Cheick Tidiane Diabaté lamentou a morte da jovem e disse que "não é correto banir mulheres de assistir a jogos de futebol nos estádios" e postou uma charge do artista Omar Momani no Instagram.

A A.S. Roma também se pronunciou e mudou seu logotipo para azul em homenagem à luta de Sahar. "AS Roma é amarela e vermelha, mas hoje nosso coração sangra em azul por Sahar Khodayari. O belo jogo foi feito para nos unir e não para nos dividir." Afinal, "fair play" é isso.