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Dona Edite, do Sarau da Cooperifa: "Poesia não é aquela coisa pura. É luta"

Dona Edite diz que poesia é "amor e luta" - Júlio César Almeida
Dona Edite diz que poesia é "amor e luta" Imagem: Júlio César Almeida

Nathália Geraldo

De Universa

08/09/2019 04h00

"Dona Edite! Dona Edite! Dona Edite!". O povo clama. Depois de uma conversa de pouco mais de meia hora com Universa, Edite Marques da Silva, de 77 anos, levanta-se da cadeira de madeira reservada a ela no bar Zé do Batidão e, debaixo de aplausos, coloca-se à frente do microfone.

Entre garrafas de cerveja, porções de torresmo e refrigerantes, Edite se ergue para declamar o poema "Autor da Vida", escrito por Paulo Roberto Gaefke (veja o vídeo mais abaixo). Encontra seu espaço naquele lugar, ainda que não veja ninguém. Edite é deficiente visual.

Há 13 anos, Edite frequenta o bar no Jardim Guarujá, zona sul de São Paulo (SP), parte do cenário do projeto Sarau da Cooperifa, um movimento cultural da periferia de São Paulo que leva poesia à periferia todas às terças-feiras. O Sarau completa 18 anos de resistência em 2019.

"Poesia é o que a gente sente, o resto é literatura", diz um adesivo colado em um engradado de cerveja do espaço. Dona Edite acrescenta: "Poesia é tudo na vida. E não é aquela coisa pura. É amor. É luta. É saber que você tem que pisar no chão e erguer sua cabeça. Não ter medo das lutas."

Há oito anos, Edite "zerou a vista" por causa de diabetes. "Bateu o desespero", conta. Por isso, está sempre acompanhada de sua irmã Izabel Marques da Silva, a Zazá, um ano mais velha.

No texto escolhido por Edite naquela noite, há um trecho sobre a vida ser uma tela em branco para pintarmos nossa história. "Amar, viver, sonhar, acreditar, lutar e até o chorar são fases que compõem o grande quadro chamado vida, onde a tela é a sua história."

Dona Edite recita Autor da Vida em Sarau da Cooperifa

Universa

Amparo na comunidade

Parte de sua própria narrativa após perder a visão está sendo colorida na Cooperifa. "Eu criei raiz aqui e enxergo pelos braços e pelas pernas das pessoas que frequentam", explica.

"Até chegar aqui, eu sempre lutei muito. Não tinha casa e comprei casa. Só tinha os quatro anos primários, lutei para estudar. Mas, perder a visão, eu não estava preparada. Cada dia que passava eu deixava de enxergar alguma coisa. Comprei lupa, óculos especiais, mandei buscar aparelhinho. Nada adiantou."

Edite é famosa na Cooperifa e diz que se sente muito valorizada pela comunidade do Sarau. O episódio do "pé quebrado" comprova. "Eu quebrei meu pezinho ano passado, estava tão triste lá em casa, aí a Lu Souza [uma das produtoras da Cooperifa] me ligou e disse: 'Dona Edite, vá se preparando porque você vai declamar'. E não sei como, mas eu ia falando de lá e eles viam. Eles jogaram na internet. Fiquei tão felizona."

A cegueira e Zazá

Dona Edite já era consciente de seus problemas de saúde. Ela tem diabetes há anos e sofreu uma hemorragia que prejudicou a retina. Depois, identificou glaucoma e catarata congênita. Ter ficado no escuro totalmente foi, de fato, um baque para ela. Já frequentava o Sarau da Cooperifa, mas se sentia isolada e sem saber lidar com a cegueira. Foi quando foi buscar ajuda, apoio com psicóloga, e descobriu a poesia.

Dona Edite e dona Zazá na Cooperifa - Nathália Geraldo - Nathália Geraldo
Dona Edite e dona Zazá vão todas às terças-feiras no Zé do Batidão
Imagem: Nathália Geraldo

"Começou a pesar demais para mim. Me deu um estalo na vida e resolvi fazer terapia com psicóloga por dois anos no HC [Hospital das Clínicas, em São Paulo]. Aí, frequentei a Fundação da Dorina Nowill [para inclusão de pessoas com deficiência visual]. Dorina era uma senhora que perdeu a visão com 17 anos e fez faculdade, trouxe o braille aqui pro Brasil. E na Fundação, eles tinham aqueles livros falados. Fui pegando emprestado. Foi quando vi o poema 'Estas mãos', de Cora Coralina. Lá me disseram que pessoa que não enxerga só não pode andar de moto, dirigir carro e pilotar avião. Aí eu peguei isso com a mão, com os braços, com meu corpo, com tudo."

Dona Edite diz que só não aprendeu o braille porque não conseguia cumprir a agenda de aulas, de segunda à sexta. "Como tinha medo de ir sozinha e Zazá ainda trabalhava, eu não fiz. Mas, o que eu ganhei de lá foi esse jeito de aprender a lidar com a minha deficiência."

Dona Zazá está sempre ao lado de dona Edite. Elas moram com mais uma irmã, Cleonice, no Jardim Guarujá — estão no bairro desde 1981. Nenhuma é casada ou teve filhos. Toda terça-feira, a dupla tem carona ou transporte enviado por alguém do Sarau, para que ela não perca a chance de recitar um poema.

Outra pessoa da família que ajuda muito dona Edite a seguir com seu trabalho com as palavras é a sobrinha, Assucena, que grava poemas em uma fita cassete para ela ouvir e decorar. "Você é novinha. Conhece walkman?", pergunta a Universa. "É com ele que eu vou aprendendo novos poemas."

Dona do dom

Dona Edite diz que gosta muito de recitar "Navio Negreiro", de Castro Alves, os poemas "da Rose", da Cooperifa, e algumas coisas declamadas por Maria Bethânia, uma artista que marcou sua vida.

"Sempre gostei dela. A 'Dona do Dom' que Bethânia canta faz parte da minha existência porque, uma vez, a gente teve um amigo secreto e Zazá me deu um CD dela com essa canção. Eu passava por um momento muito difícil e, de tanto ouvir, acabei decorando inteiro. Agora, quero decorar 'Carta de amor' [aquela dos primeiros versos 'Não mexe comigo que eu não ando só'], de Paulo Cesar Pinheiro, cantada por ela também".

Amor, força, identidade, aliás, são os temas que se unem à sua vontade de usar a poesia como instrumento de luta. "O Sérgio Vaz [um dos fundadores da Cooperifa] sempre fala que a gente tem que estar munido de canetas, lápis, livros. Por isso, recito um poema dele que se chama 'Literatura das ruas'".

Os primeiros versos são:

"A literatura é dama triste que atravessa a rua sem olhar para os pedintes, famintos por conhecimento, que se amontoam nas calçadas frias da senzala moderna chamada periferia."

A frase escrita na porta do banheiro do Zé do Batidão traz o recado para entender a potência da voz de Dona Edite invadindo o bar em uma noite chuvosa. "Não confunda diploma com vivência e visão."