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Ela largou a Microsoft para ajudar ONGs e ganhar menos de 10% do salário

Andrea Gomides trocou a carreira de executiva para ajudar projetos sociais - Divulgação
Andrea Gomides trocou a carreira de executiva para ajudar projetos sociais Imagem: Divulgação

Luiza Souto

De Universa

28/08/2019 04h00

Moradora de Niterói (RJ), Andrea Gomides liderou a área de vendas da HP e depois da Microsoft. Esteve algumas vezes nos EUA com o todo-poderoso da gigante da tecnologia, Bill Gates, e lidava diariamente com altos executivos da área de tecnologia. Mas dispensou o cargo promissor para montar sua ONG, diz que não ganha nem 10% do salário anterior e assegura: hoje, aos 50 anos, está mais feliz com a escolha que fez.

Só hoje Andrea gerencia mais de 400 ONGs no país. E, enquanto o presidente Jair Bolsonaro (PSL) chegou a acusar esse tipo de instituição de estar por trás das queimadas na Amazônia, ela manda o seu recado: "Nunca encontrei nenhuma ONG desonesta".

Quando explica a opção pelo terceiro setor, Andrea volta aos seus sete anos de idade, quando visitou um orfanato com um grupo da escola: "Na volta para casa, lembro que perguntei à professora por que aquelas crianças não vinham com a gente no ônibus e me impactou saber que elas moravam ali, não tinham uma casa".

Aos 20 anos, já cursando ciências da computação na PUC, passou uma semana numa comunidade carente em Friburgo, na região serrana do Rio de Janeiro, fazendo trabalhos diversos com crianças: brincadeiras, culinária, passeios. Já estava engajada com algumas ONGs e foi surpreendida com o pedido de uma mãe: ela queria que Andrea cuidasse de seu filho, Fabiano, com cerca de sete anos. "Decidi que meu filho pode ir morar com você", disse a mulher.

"Levei um susto. Não sei o que pode ter acontecido para a família achar que eu, na época com 20 anos, solteira, estudante, poderia levá-lo e dar a ele uma vida melhor, mas me tocou uma mãe querer abrir mão de seu filho em nome de um futuro melhor. E mostrei que o melhor para ele era crescer perto dos pais."

Pouco tempo depois, Andrea desembarcou em São Paulo e se envolveu com projetos sociais numa favela no bairro do Limão, na zona norte. Todo sábado, uma moradora conhecida como dona Maria abria as portas de uma escola pública para que os voluntários atuassem com a comunidade. Uma vez, a senhora não apareceu, e Andrea adentrou a favela em busca da casa dela. Encontrou dona Maria desfigurada: o marido a havia espancado.

"Ela ainda pediu desculpas por não ter aberto a escola", lembra Andrea.

Escolhi sair do ar-condicionado para vivenciar o que acontece com as pessoas

A virada na sua vida veio logo após o episódio. Já no fim de 2006, Andrea foi convidada para coordenar uma ONG. E leu o livro "Saí da Microsoft para mudar o mundo", em que o autor, o americano John Wood, conta como implementou a metodologia do mercado em sua organização sem fins lucrativos:

"Pensei nos Fabianos e nas Marias e em muitas outras histórias que fui vivenciando. E questionei: 'O que eu estou fazendo aqui, nessa empresa, onde as pessoas tocavam sino para celebrar cada venda? O que elas estavam comemorando?'"

Comparar minhas coisas, como o modelo da minha televisão, com a realidade social de muitas pessoas começou a me incomodar

A executiva aproveitava os almoços para desenhar, em guardanapos mesmo, um modelo de negócio para ajudar empreendedores com projetos de impacto social. "É avançar no trabalho informal de voluntários e ajudá-los a impactar mais", ela resume.

No ano seguinte, deixou a Microsoft e São Paulo e passou 40 dias na Europa se especializando na área, dentro de uma organização. Voltou direto para o Rio de Janeiro e mergulhou por dois anos numa ONG, ajudando-a a estruturar seu projeto, de forma voluntária, investindo todas as suas economias. Nasceu então o Instituto Ekloos, registrado em 2009 e que hoje conta com 11 funcionários, dez mulheres e um homem.

"Fiquei até 2014 arcando com todos os custos e hoje não recebo 10% do meu último salário. Trabalho para pagar as contas, mas escolhi sair do ar-condicionado para vivenciar de fato o que está acontecendo com as pessoas, visitando comunidades. O ganho pessoal é de mil por cento."

"Em todo setor há pessoas desonestas, inclusive no governo"

A escolha rendeu, no início, olhares desconfiados e portas fechadas. Andrea fala que algumas pessoas chamaram-na de louca por largar a estabilidade pelo terceiro setor. Até hoje, recebe convites para voltar ao mercado. O último aconteceu duas semanas antes desta entrevista:

"Quando larguei a Microsoft, marquei um almoço com a presidente de uma grande empresa com quem tinha fechado uma venda importante. Era uma potencial investidora. Eu estava empolgada, mas quando contei que montei uma ONG, ela fechou a cara e quase levantou para ir embora. Essa pessoa disse: 'Sempre vi você como uma pessoa honesta. Jamais imaginaria que fosse capaz de fazer uma coisa dessas'. E ainda me aconselhou a não falar que eu tenho uma ONG, mas que faço um trabalho social. Saí arrasada".

Mas o mundo dá voltas, e essa mesma diretora ligou para Andrea no ano passado. Ela queria ajuda para implementar uma política de voluntariado na sua empresa. Disse que seguia Andrea pelas redes sociais e admirava a história dela.

"A gente vive um momento complicado, ainda mais agora que o Bolsonaro anda atacando as ONGs. É muito complicado falar que as ONGs, de forma geral, se beneficiam de recursos de fora, dando a entender que não são trabalhadores sérios. Claro que em todo setor há pessoas não honestas, inclusive no governo. Mas encontrei mais de 600 instituições e nunca peguei nenhuma desonesta. O que acontece é que há muita gente sem conhecimento em gestão, que não sabe, por exemplo, prestar contas", explica Andrea.

O Instituto Ekloos funciona como uma aceleradora social: ela senta com a organização que de alguma forma trabalha com impacto social, entende suas deficiências e capacita o grupo por nove meses. E de graça. O seu ganho, ela explica, vem de doações de empresas e parcerias.

Ainda neste ano deve levar seu projeto para Salvador. A ligação com a capital baiana começou em 2018, quando ela ajudou a equipe do programa da TV Globo "Caldeirão do Huck" a montar uma creche por lá. E, neste ano, está lançando também um projeto que vai colocar jovens pesquisadores em contato com empreendedores.

Cases de sucesso

São muitas as histórias de sucesso que Andrea ajudou a construir, entre elas o Era Uma Vez o Mundo, da historiadora Jaciana Melquiades. Neste ano, ela abriu a primeira loja física no Rio dedicada a bonecas negras e brinquedos educativos sobre a história negra. Em breve, vai inaugurar um outro ponto, na estação do metrô Siqueira Campos, em Copacabana, zona sul do Rio.

Ela também ajudou um ex-morador da favela da Rocinha a organizar a Estante Mágica, projeto que ajuda crianças de mais de 2.000 escolas públicas e particulares por todo Brasil a publicar livros. Robson Melo foi convidado pela Universidade Harvard, nos Estados Unidos, para explicar o seu modelo de negócio e tem hoje estimativa de faturamento de R$ 30 milhões por ano.

"Também estamos finalizando um programa na Cidade de Deus (zona oeste do Rio) com um grupo que já atua por lá com crianças há anos, mas sem nenhuma metodologia específica. Montamos uma metodologia baseada no currículo básico de competências, um material público em que, por faixa etária, identificamos o que uma criança precisa desenvolver em termos de competências e também montamos uma oficina de podcast. O grupo participou de um edital e conseguiu R$ 100 mil para trabalhar a metodologia", diz Andrea.

Como pedir ajuda

Para participar do programa de aceleração de Andrea, primeiro, é preciso ter uma ideia. E, depois, se inscrever no site. A equipe analisa cada proposta e entra em contato. O blog da instituição também compartilha conhecimento, metodologias e dicas de como montar uma ONG.

E seus tentáculos vão se expandindo: recentemente, Andrea lançou a agência Kio, para trabalhar com a comunicação das organizações. E oferece, ainda, um sistema de gestão chamado ONG Fácil, pelo qual a organização gerencia o investimento e acompanha a prestação de contas das ONGs online.

"A gente nunca diz não porque as ONGs já ouvem isso frequentemente", diz Andrea. "O que a gente faz é estudar um melhor caminho para viabilizar a ajuda possível."