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Mãe de vítima do trânsito: "Para mim, retirada de radares é uma afronta"

A manicure Ana Lucia, 50, vive com a dor da perda da filha Jéssica, 25, morta em 2016 - Arquivo Pessoal
A manicure Ana Lucia, 50, vive com a dor da perda da filha Jéssica, 25, morta em 2016 Imagem: Arquivo Pessoal

Natália Eiras

De Universa

21/08/2019 04h00

"Infelizmente, no Brasil, as tragédias de trânsito são vistas como fatalidades, mas este tipo de acidente a gente poderia evitar", conta à reportagem de Universa a deputada federal Christiane Yared (PL-PR). A ex-confeiteira e pastora evangélica entrou para a política após a morte de seu filho, Gilmar Rafael Yared, em maio de 2009. "Foi quando começou o nosso calvário."

Christiane narra a agonia vivida por muitas famílias brasileiras. A cada 15 minutos morre alguém em estradas e ruas do país, de acordo com levantamento do jornal "O Globo". Dados do Ministério da Saúde dão conta que, em 20 anos, foram registrados 734.938 óbitos relacionados ao trânsito. No fim de 2018, a Organização Mundial da Saúde contabilizou a morte de 1,35 milhão de pessoas em acidentes de carro e outros meios de transporte. Por entender a ligação desse número com o excesso de velocidade, a entidade sugeriu que a velocidade média praticada nas cidades fosse de 50 km/h.

Na contramão da desaceleração e com a aplicação de mais rigidez nas leis de trânsito, o presidente Jair Bolsonaro determinou, na última quinta-feira (15), a suspensão de 299 radares móveis de controle de velocidade, até que o Ministério da Infraestrutura "conclua a reavaliação da regulamentação dos procedimentos de fiscalização econômica de velocidade em vias públicas".

A determinação divide opiniões. Apesar da perda, a própria deputada Christiane Yared não vai contra a decisão de Bolsonaro. "Os radares móveis pegam os infratores contumazes, que estão sempre acima da velocidade. Estamos mandando uma sugestão para que o presidente aumente o efetivo da Polícia Rodoviária para que os oficiais possam pegar esse tipo de infrator", afirma a parlamentar.

Fora da política, outras mães não sentem o mesmo. "O brasileiro não respeita mesmo tendo multa, imagina tirando os radares. Esse presidente está louco", afirma a cabeleireira Ana Cardinale, de 53 anos, de Lins (SP), cujo filho, Adler Cardinale Sousa, de 28, morreu atropelado por um carro que invadiu a lanchonete em que ele estava, em 2016. "Para mim é uma afronta", complementa a manicure Ana Lucia Mesquita de Queirós, 50 anos, de Goiânia (GO), que também em 2016 perdeu a filha, Jéssica de Queirós, 25 em um acidente. Jéssica estava de moto, a caminho do trabalho, quando foi atingida por um veículo. "Eu não quero que outras mães passem pelo que estou passando."

Universa reuniu, nesta reportagem, algumas histórias de mulheres que viram suas famílias atravessadas por um carro em alta velocidade.

"Todo dia vivo um pesadelo por ter perdido minha filha"

"Minha filha Jéssica tinha 25 anos e era gerente de bar, trabalhava à noite, mas sempre pegava bicos para complementar o sustento da filha dela, a Maria Eduarda. Em 16 de abril de 2016, ela foi para casa e tirou um cochilo. Pediu para que eu a acordasse às 20h. Sabia que ela estava o dia todo sem comer, então falei que ela precisava comer algo antes de sair. Ela não deu muita atenção e saiu sem jantar. Pegou a Biz [moto] dela e foi para o trabalho.

Jéssica estava na avenida 85, saindo de um túnel, quando reduziu a velocidade por causa de um semáforo. O carro que vinha atrás estava a mais de 100 km/h e não conseguiu parar. Minha filha não teve chance nenhuma, morreu instantaneamente.

Eu não lembro do velório dela porque fiquei em choque, mas as pessoas dizem que estava cheio. Não duvido, porque Jessica ajudava quem podia e quem não podia. Ela era uma menina muito boa. Agora, quando penso nela, entro em desespero, em saber que não vou mais ver a minha filha.

O motorista foi preso em flagrante e ficou um ano e oito meses preso. Ele foi condenado a pagar R$ 250 mil de indenização e pensão para Maria Eduarda até ela completar 21 anos. Não recebemos nada até agora.

Eu acho um absurdo. O presidente do Brasil não sabe o que está fazendo. Para mim é uma afronta, porque eu não quero que outras passem o que estou passando. Se, com radar, as pessoas já fazem isso, imagina como será sem radar? Vai ser uma carnificina. As leis tinham que ser mais rigorosas.

Eu falo disso quantas vezes for possível. Ficam me intimidando para eu parar de falar de Jéssica, dizendo que já passou. Pode ter passado para os outros, mas para uma mãe nunca passa. Se for para ajudar outras mães, eu falo do que aconteceu com a minha filha todos os dias. Todo dia eu vivo um pesadelo por tê-la perdido."

Ana Lucia Mesquita de Queirós, 50, manicure, de Goiânia (GO). Mãe de Jéssica de Queiros, 25.

"O impacto muda completamente nossas vidas"

christiane yared - Theo Marques/Folhapress - Theo Marques/Folhapress
Christiane Yared, 59, perdeu o filho Gilmar, 28, em acidente em 2009. "Foi um calvário"
Imagem: Theo Marques/Folhapress

"Eram 2h30 da manhã, quando o meu porteiro ligou. Achei, inicialmente, que era um assalto, mas ele falou que tinha sido um acidente. Dois agentes funerários me trouxeram a notícia de que meu filho havia morrido. Foi quando começou um calvário para a gente.

Meu filho, Gilmar, estava em um carro com um amigo quando outro veículo, blindado, veio em alta velocidade. Como a rua era um declive, o outro carro voou e caiu em cima do veículo onde estava meu filho. Foi um acidente muito violento, então, quando fomos ao Corpo de Bombeiros, não deixaram meu marido reconhecer o corpo de Gilmar. Graças a Deus.

Como no caso de várias outras mães, eu vivo um verdadeiro pesadelo. É uma desestruturação muito grande da família. O impacto muda completamente a vida da gente. Nenhuma mãe deveria enterrar filhos. É uma dor que levamos para o túmulo da gente.

Infelizmente, no Brasil, as tragédias de trânsito são vistas como fatalidade, mas esses acidentes podem ser evitados. Precisamos ter mais políticas de educação de trânsito. O que aumenta a dor, também, é o fato de a Justiça não atender ao desejo dos corações das famílias de vítimas. Temos leis fortes e boas, mas o Judiciário é permissivo. E, quando a Justiça não pune, ela não educa. A leitura que a sociedade faz é de que não dá em nada.

No caso do meu filho, o motorista foi a júri popular. No banco dos réus, ele pedia desculpas. Esse é o tipo de coisa que a gente pede quando derruba água, uma xícara de café em alguém. Não quando você mata o filho de alguém."

Christiane Yared, 59, deputada federal (PL-PR). Mãe de Gilmar Yared, 28.

Adler, 28, e a mãe, a cabeleireira Ana Cardinale, 53. "Ele não se despediu" - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Adler, 28, e a mãe, a cabeleireira Ana Cardinale, 53. "Ele não se despediu"
Imagem: Arquivo Pessoal

"Meu filho não morreu sozinho, ele levou um pedaço de mim"

"Meu filho Adler trabalhava no escritório de uma fábrica de sapatos e estava terminando a faculdade. No dia 15 de outubro de 2016, ele chegou em casa e ficou um pouco com a gente em um churrasco que estávamos fazendo. À noite, ele decidiu sair. Lembro que até pensei, na hora, que ele não tinha me dado tchau.

Por volta das 4h30, fomos acordados pela campainha, que estava tocando sem parar. Era a polícia que tinha vindo me avisar que meu filho havia falecido. Daquele momento em diante, eu nunca mais fui a mesma, não tive mais uma vida.

Adler estava em uma conveniência aqui no centro da cidade, sentado em uma mesa. Dá para ver na gravação de vídeo que ele levantou-se mexendo no celular quando um carro, em alta velocidade, entra na conveniência e o esmaga na parede. Tenho para mim que, se ele não tivesse levantado, talvez não tivesse morrido.

O motorista continuou dentro do carro, estava muito bêbado, e foi preso em flagrante. Ele ficou em detenção por poucos meses, enquanto eu estou presa aqui nessa dor.

Meu filho não morreu sozinho, ele levou um pouco de mim também. Consigo continuar vivendo por causa dos meus outros dois filhos. Eu vivo por viver.

Tem uma camisa do Adler que ele deixou jogada em cima da cama. Coloquei essa camisa dentro de um saquinho para sentir o cheiro dele. A gente nunca espera na vida enterrar um filho. Ele foi embora muito de repente, foi-se toda a expectativa da vida que eu teria com ele. Ele ainda tinha mais 50 anos de vida. Nunca verei os meus netos, filhos dele.

Vai chegando perto da data da morte dele e eu começo a ficar triste. Para mim, não tem mais festa de fim de ano, não tenho clima. Em fevereiro, ele faria aniversário, então continuo na mesma tristeza. Então são seis meses de sofrimento intenso.

Eu sou contra demais a essa ideia de tirar esses radares. O brasileiro não respeita pagando multa, como vai ser sem os radares? Esse presidente está louco. O brasileiro não tem aquela educação de trânsito. Meu filho nunca bebeu para dirigir, não jogava lixo no chão, e foi isso que aconteceu com ele."

Ana Cardinale, 53, cabeleireira, de Lins (SP). Mãe de Adler Cardinale, 28.