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Mãe que viu filho matar irmã: 'Ele é um menino de ouro, mas tem uma doença'

irmao mata irma - Arquivo pessoal
irmao mata irma Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

16/08/2019 04h00

"Meu filho não é bandido, é menino de família, que cresceu com base, com educação, com tudo que tinha direito. Ele quer ser médico, estudava muito e fazia teatro há três anos."

Durante uma hora de conversa pelo telefone, a gerente de contas D., 36, intercala choro com gargalhadas de nervosismo. Ela estava na casa dos pais, em Santa Catarina, um dia após o aniversário de 15 anos do primogênito. "Falei pra ele: 'Filho, você tem que entender que antes você tinha uma vida, agora vão te acusar por qualquer vento norte que soprar'", lembra, antes de pausar a fala para mais um momento de lágrimas.

Sem nenhum sinal de briga ou desentendimento, o adolescente matou a irmã, de 12 anos, a marteladas na tarde do último dia 4 de junho, no apartamento onde a família vivia, em São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba (PR). Ficou até o dia 9 de agosto num centro socioeducativo, mas, de acordo com a mãe, foi liberado pelo Ministério Público do Paraná para viver e receber tratamento na casa do pai, de quem D. se separou há 11 anos. Ele ainda não tem um diagnóstico fechado, mas "várias explicações possíveis de doenças mentais". A mãe fala que ainda não está pronta para lidar 24h por dia com o menor.

"Desenvolvi síndrome do pânico. Não estou preparada para ser forte por ele. Consigo vê-lo, passar uma tarde sem mostrar minhas fraquezas, mas ficar 24h com ele ainda é pesado pra mim", diz D., que vive com os pais desde o dia da tragédia.

O Ministério Público do Paraná, por meio da 3ª Promotoria de Justiça de São José dos Pinhais, informou à reportagem, por email, que o caso tramita sob sigilo total, e que, por isso, não confirma ou afirma nada sobre o ocorrido, mesmo sabendo que as informações vieram da mãe. A Polícia Civil, por email e telefone, afirmou que ainda vai ouvir algumas testemunhas e confirmou as informações enviadas pela reportagem sobre o ocorrido, sem nada acrescentar.

O dia da tragédia

Era hora do almoço quando D. foi em casa buscar a caçula para levá-la a escola. Encontrou o filho mais velho ferindo a garota com golpes de martelo. Ele também acertou o instrumento na nuca da mãe, que teve traumatismo craniano leve.

O Corpo de Bombeiros foi ao local após receber uma chamada dos vizinhos sobre uma briga entre jovens. Ao chegar ao condomínio onde vivia a família, agentes encontraram a menina com um ferimento profundo na cabeça e o irmão descontrolado, "possivelmente em surto psicótico", como descreveu o tenente Rafael Lechinhoski em entrevista para um canal de TV.

Na mesma reportagem, vizinhos disseram que, antes do incidente, o garoto havia batido em algumas portas pedindo por um martelo emprestado, sugerindo que o crime foi premeditado.

A mãe diz que o filho tentou fugir pulando a janela do apartamento, no segundo andar do prédio. Na queda, quebrou as duas pernas e até hoje ainda não consegue andar. Está com pinos e pontos nos membros.

"Fingindo demência"

D. não voltou ao apartamento. Desde então, mora na casa dos pais, a 430 quilômetros de São José dos Pinhais, e dali não pretende se mudar. Diz que tudo lembra a vida feliz que tinha com os filhos e que só quer esquecer de toda a cena. Ela toma um antidepressivo de dia e um remédio para dormir à noite. Está de licença do banco onde atuava como gerente de contas e tem consultas ocasionais com um psiquiatra:

"Consigo fingir demência, me enganar, imaginar que estou a passeio, e que vou voltar para casa e minha vida vai estar lá, exatamente como era. Não tenho outra opção até estar preparada para dar mais detalhes".

Nada na narrativa de D. indica que ela pudesse prever o que iria acontecer naquela família.

"Se eu fosse uma péssima mãe, se odiasse meu filho, se minha família fosse desestruturada, pensaria: 'Me livrei de tudo aquilo'. Mas minha família era perfeita. Batalhei muito para dar do bom e do melhor. Comiam o que queriam. Viajávamos muito. Meu filho fazia banco pra mim. Minha filha fazia bolo. De repente, tudo desabou."

Nenhum sinal de doença

D. diz que o adolescente não se lembra de ter cometido o crime e que chorou quando soube pela mãe o que fez. Ele contou para a família que se recorda de ter sentido uma tontura antes de tudo e, depois, de acordar na ambulância, já com as duas pernas quebradas.

"Não está fácil pra ele. Ele amava a irmã e também me amava. Nunca faria uma coisa dessas. Ele está sendo forte e seguindo em frente", afirma a mãe.

O esquecimento teria justificativa, diz ela: seria consequência de uma amnésia dissociativa. O transtorno acontece geralmente após fatos traumáticos, mas sem danos ao cérebro, como na doença de Alzheimer, por exemplo. E a memória pode voltar, muitas vezes sem necessidade de tratamento, explica o doutor em psiquiatria, psicanálise e saúde mental pela UFRJ Elie Cheniaux. Por isso, D. defende o tratamento para o filho, no lugar de uma medida socioeducativa:

"É um menino de ouro. Agora precisa das pessoas certas, de muito amor e carinho".

D. diz ainda que o adolescente nunca apresentou "um grão de areia" em seu comportamento que indicasse que poderia tomar tal atitude. "Não teria nem como falar: 'Mas aconteceu tal coisa quando ele tinha 10 anos...'"

'Um jovem que precisa de cuidado'

No caso de uma psicopatia, é possível perceber cedo os sinais quando, por exemplo, a criança maltrata um animal, atrapalha as brincadeiras dos outros amigos ou não aprende com os castigos. Mas o primeiro passo em caso de suspeita é buscar uma avaliação e fazer os exames necessários para chegar a um possível diagnóstico, explica a psicóloga Marina Vasconcellos, especialista em terapia familiar pela Unifesp e voluntária no Ambulatório Integrado dos Transtornos do Impulso do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Ela não teve contato com a família nem acesso aos exames do garoto e insiste na necessidade de se fazer uma bateria de exames, incluindo os de imagens, para se tentar chegar a possíveis explicações e verificar se há mesmo um transtorno psíquico.

Já na avaliação do coordenador de Psicologia do Núcleo Forense do IPq-USP (Instituto de Psiquiatria da Universidade de São Paulo), Antonio de Pádua Serafim, o garoto pode ter tido uma desorganização psíquica momentânea, um quadro delirante, principalmente porque ele, de acordo com a mãe, nunca apresentou nada de anormal em seu comportamento.

O especialista em saúde mental e violência afirma também que pode ser difícil antecipar qualquer descompensação nesses casos. Mas que isso não significa que a pessoa não terá um outro rompante. Nem que ela tenha que ficar presa.

"Num caso como esse, a sociedade acha que o melhor seria trancafiar a pessoa, mas estamos falando de um jovem que precisa de cuidado. Jamais caberia aqui, por exemplo, um manicômio judiciário. Ele é menor de idade. Até porque, se ele voltar a ter manifestação agressiva, pode atentar contra si mesmo. É preciso que ele e a família sejam acompanhados sempre, em especial a mãe. Ela não sabe se chora pela perda da filha ou se se debruça no cuidado de quem está aqui", diz Serafim.

"Não sei se vou entender o que aconteceu"

Em uma rede social, cheia de fotos dos filhos e declarações de amor à família, amigos e parentes mandam desejos de paz à D. Ela diz que recebe muito apoio mesmo e que, em nenhum momento, sentiu-se culpada ou teve a educação que deu para os filhos questionada. "Vasculharam minha vida toda. De forma alguma tinha algo que pudesse me apontar como culpada, ou aos meus filhos. Foi uma situação trágica", ela afirma.

Mas ouviu algumas acusações pesadas contra o filho adolescente, como, por exemplo, a de que ele teria premeditado o crime, já que vizinhos disseram que ouviram uma discussão e que ele teve tempo de pedir um martelo emprestado a alguns moradores do prédio:

"É compreensível. Não julgo, porque ele tirou uma vida. Mas é uma doença. A gente não entende e não sei se um dia entenderei o que aconteceu".

E frisa: se houvesse um pingo de desconfiança sobre o filho, ela mudaria de opinião.

"Se meu filho tivesse motivo e me falasse: 'Fiz porque eu quis, me deu vontade' ou algo do gênero, eu seria a primeira a enfiá-lo onde ele estava, pra pagar pelo que ele fez."

Tudo tem um propósito

D. prevê um futuro carregado de julgamentos contra o filho. Acredita que tudo será motivo para culparem o adolescente por algo fora do normal que vier a acontecer a sua volta. Mas diz que ganhou uma missão depois do incidente:

"Tenho muita fé de que isso não vai mais se repetir. Os meus filhos e eu fomos usados para algum propósito. Tanto que era para estar morta porque tive traumatismo craniano. Estava morta e alguma coisa me levantou daquele chão. Está certo que, às vezes, preciso sentar, porque minhas pernas tremem, mas acredito muito que temos um propósito e quero ajudar outras pessoas a seguirem em frente".

Ela não quer revirar o baú de memórias da família a fim de achar um porquê para essa tragédia. Diz que não adianta. Está feito. Não volta. Precisa agora aprender a se olhar novamente e achar uma outra identidade.

"Eu perdi tudo, a minha vida. E ela não foi fácil. Quando me separei, não tinha experiência nem faculdade. Nasci em Santa Rosa (RS), saí no mundo com minhas duas malinhas e venci. Graças a Deus, gravei todos os momentos e tenho boas lembranças, sem um pingo de remorso. E minha filha foi muito feliz. Hoje, ainda não consigo me olhar no espelho e saber quem sou eu. Minha estrutura eram meus filhos. Morrer e nascer de novo, aos 36, não é fácil, e o tempo não te espera, então você tem que continuar caminhando."

E depois de se encontrar, de achar o seu norte, como ela mesma descreve, quer voltar a morar com o filho.

"Nós dois juntos, agora, seria mais difícil. Ele ia me ver chorar. Mas ele sabe que tem uma mãe que o ama."