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Geochicas: elas fazem mapas para ajudar mulheres a lidar com a violência

As cartógrafas da Geochicas, que compilam dados de violência contra mulheres e querem ampliar a representatividade feminina na área - Divulgação
As cartógrafas da Geochicas, que compilam dados de violência contra mulheres e querem ampliar a representatividade feminina na área Imagem: Divulgação

Juliana Sayuri

Colaboração com Universa

15/08/2019 04h00

Era um dia de sol de novembro de 2016 quando os caminhos da geógrafa francesa Céline Jacquin, da desenvolvedora de negócios mexicana Mirian González e da comunicadora costarriquenha Selene Yang se cruzaram pela primeira vez na Biblioteca Mário de Andrade, no centro da cidade de São Paulo. Antes, elas só se conheciam digitalmente pelos codinomes nas mídias sociais: @mapeadora, @mapanauta e @srta_peperina.

A biblioteca abrigou a conferência State of the Map Latam 2016, o encontro latino-americano do OpenStreetMap (um projeto de mapa-múndi editável, colaborativo e aberto, um tipo de Wikipédia de mapas). Dos 125 participantes inscritos, apenas 36 eram mulheres.

Céline, Miriam e Selene discutiam a disparidade numérica na área durante um bate-papo coletivo no Telegram. As cartógrafas decidiram articular um pré-encontro das mulheres que participariam da conferência, compondo um painel de discussão sobre a importância de ter uma perspectiva de gênero e diversidade na construção de mapas digitais. Assim, as três fundaram o coletivo Geochicas, que pretende destacar o papel das mulheres no mapa.

"Quem mapeia agrega dados geoespaciais ao OpenStreetMap. No Geochicas, queremos que esses dados causem impacto em mulheres de diferentes latitudes", definem a Universa - o trio preferiu realizar esta entrevista conjuntamente, num documento compartilhado no Google Drive. A princípio, o núcleo contava com 15 participantes; hoje, são 200 integrantes, concentradas principalmente na América Latina. O trabalho é voluntário.

Um mundo de latitudes

Liderado por Céline, Miriam e Selene, o projeto quer incluir mais mapeadoras na construção de mapas mais próximos da realidade. Segundo elas, a premissa é simples: se as cartografias colaborativas forem abastecidas apenas com informações derivadas de um grupo (homem, heterossexual e branco, por exemplo), os dados vão ficar viciados.

A diferença do olhar feminino modelou projetos de mapas, por exemplo, de casos de feminicídio na Nicarágua, onde 40 mulheres foram assassinadas entre janeiro e setembro de 2017. De acordo com um levantamento feito pelas Nações Unidas em 2019, a América Central concentra os maiores índices de crimes contra mulheres.

Outro projeto foca violência contra mulheres no México, mais precisamente nos assentamentos informais instalados na província de Oaxaca após os terremotos que abalaram a região em setembro de 2017 e fevereiro de 2018. Em andamento, o projeto faz parte do Humanitarian OpenStreetMap, organização internacional que promove ações humanitárias em áreas de alta vulnerabilidade.

As mapeadoras vão a campo com smartphone, GPS e uma câmera fotográfica. Nessas investigações in loco, elas entrevistam moradores das cidades, fotografam ruas, cruzam geolocalizações e informações sobre estradas, casas e construções. Depois, os dados são incorporados aos mapas digitais, feitos a partir de imagens de satélite, disponíveis na internet.

Uma das integrantes brasileiras do coletivo é a estudante de geografia Caroline Souza, estagiária de infografia do Nexo Jornal. Ela entrou no grupo no início de 2018 e atualmente trabalha no relatório anual da Geochicas.

Projeto #LasCalles

Dar voz a mulheres nas ruas também é o norte do projeto #CallesVioletas, que quer traçar um mapa que contemple sentimentos, perspectivas e impressões de mulheres em espaços públicos na Cidade do México. As jovens integrantes do Geochicas consideram as mulheres uma minoria não representada nos mapas e nos meandros das cidades. Em construção, o mapa das ruas "violetas" tenta trazer uma leitura sensível sobre a ansiedade e o medo de andar por certos caminhos hostis à presença feminina. No Brasil, essa singular sensação de insegurança em espaços públicos foi retratada, por exemplo, no documentário "Chega de Fiu Fiu", desdobramento da campanha da ONG feminista Think Olga.

Fora de campo, as Geochicas se comunicam constantemente no chat coletivo abrigado no Telegram. Na internet, elas compartilham inquietações, ideias de ações e projetos. Uma delas surgiu nas conversas sobre o Dia Internacional da Mulher de 2018 e as manifestações do movimento feminista internacional 8M: o projeto #LasCallesDeLasMujeres, que ilustra ruas com nomes femininos em diversas cidades. Segundo as fundadoras, o mapa pretende dar visibilidade à "brecha de gênero" nos espaços público e digital.

Uma colaboradora elaborou o código, outra melhorou o script, outras agregaram dados públicos das capitais escolhidas e links para verbetes relacionados às personalidades femininas que dão nome às ruas na Wikipédia. Assim, elas descobriram, por exemplo, que 93,9% dos nomes das ruas de Buenos Aires homenageiam homens. Na Cidade do México, são 88,4%. Em Havana, 62,2%.

Por enquanto, não há projetos das Geochicas pensados especialmente para o Brasil, mas as idealizadoras gostam da ideia de cartografar as ruas de uma cidade brasileira. A capital paulista, onde elas se conheceram, já foi: segundo levantamento do Datafolha, publicado neste mês, das 45.717 vias de São Paulo, apenas 16,25% possuem nomes do gênero feminino.

Elas também constataram que muitas mulheres associadas a ruas não são sequer citadas na Wikipédia. "O melhor exemplo dessa invisibilização é Donna Strickland, a física canadense que ganhou o Prêmio Nobel de 2018", dizem as cartógrafas. O verbete de Donna foi incluído às pressas após a premiação - tempos antes, um moderador da enciclopédia digital não considerou a cientista digna de nota e recusou um artigo sobre sua atuação científica e suas investigações sobre laser e feixes de luz.

Outro exemplo é Marielle Franco, acrescentam as idealizadoras do Geochicas, "uma ativista de direitos humanos nascida na favela do Rio de Janeiro, cuja luta não tinha sido considerada 'notável' a ponto de constar na Wikipédia, até o dia de seu assassinato". Em maio de 2017, seis editores decidiram eliminar o artigo referente a Marielle. A entrada só voltaria ao ar após a morte da vereadora do Rio, assassinada a tiros em março de 2018. "Em qualquer organização, a geração de dados por um grupo homogêneo de colaboradores cria um viés na informação", dizem.

Dos mais de 200 verbetes sobre cartógrafos, apenas 2 faziam referência a mulheres até 2018. Pensando nesse gap, as integrantes também publicaram uma série de posts ilustrados com informações sobre profissionais como a geógrafa argentina Elena Chiozza e a geóloga americana Marie Tharp, entre outras mulheres que ajudaram a formatar o mapa-múndi. Literalmente.