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Rezadeiras de Florianópolis se modernizam e querem ser patrimônio cultural

Encontro de rezadeiras em Florianópolis (SC) - Tade-Ane Amorim / Divulgação
Encontro de rezadeiras em Florianópolis (SC) Imagem: Tade-Ane Amorim / Divulgação

Juliana Sayuri

Colaboração com Universa

06/08/2019 04h00

Antigamente, as benzedeiras catarinenses eram procuradas à porta de suas casas por indicações de amigos e familiares. Na cidade de Florianópolis (SC), onde a tradição das rezadeiras remete a fins do século 19, as benzedeiras se modernizaram e, atualmente, são buscadas a partir de contatos via Facebook e WhatsApp.

Foi o que descobriu a socióloga Tade-Ane Amorim, coordenadora do projeto "As benzedeiras de Florianópolis: inventariando saberes", que mapeou 16 benzedores ativos na capital catarinense, entre fevereiro de 2018 e janeiro de 2019. O projeto concorre ao Prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade 2019, do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), como iniciativa de excelência no campo de patrimônio cultural. O resultado deve ser divulgado em outubro de 2019.

"A ideia do projeto era dar visibilidade à história dessas mulheres", diz Tade-Ane, que passou a intermediar pedidos de internautas por contatos de curandeiros nas páginas Benzedeiras de Florianópolis no Facebook e no Instagram - incluindo interessados de outras cidades (Rio e Brasília, por exemplo) e países (principalmente Portugal e Argentina), em busca de benzimento à distância.

Também tramita um projeto de lei do vereador Afrânio Boppré (Psol) para reconhecer "ofícios tradicionais" de benzedeiras como agentes de saúde popular, regulamentando o livre acesso a ervas medicinais nativas na ilha de Santa Catarina - até agora, elas são reconhecidas por lei em poucas cidades brasileiras, como Rebouças e São João de Triunfo (PR). Embora não se cobre por benzimento, Tade-Ane considera delicada a ênfase de não pagar pelo atendimento. "Elas estão abrindo a casa para os outros. É de bom tom levar um presente para retribuir", diz.


Benzer é bem dizer

Durante décadas, benzedeiras e benzedores eram procurados por quem não tinha acesso a médicos. Eram majoritariamente mulheres, que ofereciam orações e rituais para curar males como quebranto (mal-estar, o famoso mau-olhado), espinhela caída (a designação popular de uma anomalia do apêndice xifoide) e zipra (uma infecção na pele). Elas utilizavam ferramentas como cipós, ervas, folhas, terços e velas para os rituais, combinando elementos das culturas africana, europeia e indígena. Segundo a crença popular, elas conseguiam curar males do corpo e da alma com o poder da palavra.

Segundo as próprias benzedeiras, benzer é bendizer, isto é, o ato de dizer o bem. Entretanto, há diferentes tradições: uns acreditam que é possível treinar aprendizes de benzedores, a partir de cursos e oficinas, outros já dizem que o dom é pessoal e intransferível. Também há quem acredite no alcance do benzimento virtual e quem torça o nariz para a prática. A diversidade também está nas crenças, que combinam elementos de religiões como umbanda, espiritismo e cristianismo - entre as referências se cruzam Cristo, Allan Kardec, Iemanjá e Oxum, por exemplo.

O sincretismo religioso foi uma das descobertas do projeto, que teve apoio da Fundação Catarinense de Cultura e participação da antropóloga Bruna Donato de Oliveira, do historiador Valdir Luiz Schwenbger e da socióloga Manuela Diamico. "O benzimento pode incluir a mãe de santo e seu fio de contas do candomblé, até a fiel católica e seu terço, passando pelas curandeiras indígenas e suas ervas", exemplifica Tade-Ane. Também há diversidade de gênero e gerações: em Florianópolis, foram registradas 13 mulheres e 3 homens benzedores, com idades que variam de 30 a 100 anos.

Entre as veteranas estava Ilda Martinha Vieira, de 104 anos. Tia Ilda, tal como era conhecida, faleceu em setembro de 2018. Todos eram bem-vindos em sua casa, no sul da ilha, inclusive viajantes. Certa vez, ela recebeu dois argentinos que precisaram ir embora e não conseguiram terminar as sessões de cura - ela finalizou as bênçãos pela internet. "Mas viu, eu era pequena, sabe? Todo mundo chegava aqui em casa [e dizia]: 'chama a magrinha pra benzê, chama a magrinha pra benzê'", Tia Ilda relatou às autoras do projeto, em fevereiro de 2018, uma de suas últimas entrevistas.

Outra veterana é D. Ondina Maria Siqueira, de 86 anos, que "benze de tudo", segundo sua expressão. D. Ondina bendiz desde os 9 anos. Era tão procurada que precisou estipular horários para receber visitas na sua casa: das 9h às 11h e das 15h às 18h. Ao longo das décadas, a demanda minguou e ela passou a atender apenas 5 pessoas por dia. Mas, nos últimos meses, após a divulgação do projeto Benzedeiras de Florianópolis, no Facebook, voltou a atrair dezenas de visitantes: em abril, foram 88 pessoas em um único dia.

Benzedoras modernas

Camila Gonçalves Gomes, de 38 anos, é a mais jovem benzedeira da cidade. E é considerada um exemplo da transformação da benzedura atualmente: filha de pais ateus, a psicóloga católica passou a benzer após uma experiência na umbanda, por volta de 2010. Hoje, ela diz que não trabalha mais no contexto religioso: privilegia a psicologia e as terapias alternativas.

Nos últimos meses, o smartphone de Camila não para: são cerca de 50 chamadas por dia, além de conversas por Skype e orientações via Facebook (entre elas, de brasileiras residindo na França). "É o ritmo da vida moderna. Sou mãe de dois filhos, esposa, psicóloga, profissional e benzedeira. Faço diversas jornadas. E ser benzedeira exige uma trajetória de conhecimento e autoconhecimento, que tento transmitir: as pessoas querem se cuidar ou serem cuidadas? As pessoas precisam aprender a se cuidar, destacar a luz que está dentro delas. Minha perspectiva de benzedura é esta."

Foi na UFSC que Tade-Ane fez doutorado em sociologia política. Ateia, ela se interessa pelas histórias de benzedeiras desde a infância. "Quis cruzar esses mundos, a universidade e o imaginário das benzedeiras. Embora o projeto tenha um alicerce acadêmico, antropológico e sociológico, nós preferimos não cravar definições sobre quem pode e quem não pode se declarar benzedeira. Partimos da autodefinição e do reconhecimento da comunidade catarinense", afirma a autora. Ao lado de Manuela, Tade-Ane está desenvolvendo um segundo estudo para mapear novas benzedeiras e iniciar o "longo processo", segundo suas palavras, do pedido de patrimonialização das benzedeiras de Florianópolis.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do que foi informado, Florianópolis (SC) não é uma ilha, mas um município composto pela ilha de Santa Catarina e outros territórios.
Diferentemente do informado, vencer o concurso não implica entrar com pedido de patrimonialização junto ao Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional).