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Por que, afinal, o futebol feminino ainda é tão renegado no Brasil?

Seleção feminina posa para foto oficial da Copa do Mundo da França - Divulgação/CBF
Seleção feminina posa para foto oficial da Copa do Mundo da França Imagem: Divulgação/CBF

Debora Miranda

Colaboração para a Universa

08/06/2019 04h00

Nunca se falou tanto em futebol feminino. E, apesar de já haver um processo de reconhecimento e apoio, o preconceito com relação a jogadoras e profissionais do esporte ainda é grande. Muito se questiona também a qualidade do jogo das mulheres. Mas por que, afinal, o futebol feminino ainda é tão renegado no Brasil?

"O papel que a nossa sociedade designa para as mulheres é secundário, não é um papel de protagonismo. E tem essa ideia de que o Brasil é o país do futebol. Quando se fala de um esporte que é a identidade nacional e que é representado sobretudo pelos homens e para os homens, isso piora. As mulheres entram ali e desestabilizam essa representação", afirma Silvana Goellner, pesquisadora do Centro de Memória do Esporte da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Para Alline Calandrini, ex-jogadora e atual comentarista da Band, a evolução do esporte feminino é grande, e esta Copa vai mostrar isso. "Estou muito feliz de ver pessoas que mudam de ideia e reconhecem que o futebol é legal. Ainda existe muito preconceito, mas a gente vai mostrar dentro de campo que não é nada disso. Ontem teve uma baita partida entre França e Coreia. Foi um jogo lindo de se ver! Quem ainda acha que futebol feminino é chato, eu convido para assistir às partidas."

Esse fortalecimento da modalidade pode ajudar a romper os preconceitos, afirma Silvana. "O esporte vira um espaço de empoderamento das mulheres, numa sociedade em que a voz das mulheres é secundarizada. A ideia é pensar se a gente tem que enfrentar o futebol feminino ou valorizar o futebol feminista? Feminista no sentido de mostrar que esse espaço também é das mulheres. E deixar claro que, ao jogar, elas não vão tirar o espaço dos homens."

O que eles dizem por aí

Universa selecionou comentários de leitores postados em reportagens sobre o futebol feminino que mostram não só o machismo com relação ao esporte feminino, mas também críticas com relação à qualidade e sexualização de atletas. Até quando?

"Acho futebol feminino chato ao extremo. Não tem força física, habilidade e as goleiras aceitam tudo o que é chutado"

Segundo Silvana, quem faz esse tipo de comentário presta pouca atenção ao futebol de mulheres. "Tem mulheres que jogam muito bem! E homens que jogam mal. A gente não pode fazer esse tipo generalização. O futebol é diverso. Esse argumento tem muito mais relação com o olhar cultural que se construiu com relação às mulheres que jogam futebol do que com a realidade."

Alline diz que não gosta de comparar futebol feminino e masculino. "Óbvio que ambos são futebol, mas são coisas distintas. Historicamente, o futebol feminino foi proibido até um tempo atrás. Além disso, homens e mulheres não têm a mesma força física. O feminino é aquele futebol mais elegante, mais tranquilo, mais lento, naturalmente, assim como o vôlei é, o basquete é. Porque existe a diferença de força física entre homens e mulheres em qualquer outro esporte."

Meninos e meninas têm criações distintas no que se refere à atividade física, lembra Silvana. "Os meninos são logo jogados para o mundo de movimento, para jogar bola, correr, andar de bicicleta. As meninas têm uma educação muito mais voltada para a contenção do gesto. Como a gente quer que elas tenham um desempenho motoro igual? É um aprendizado de vida inteira."

"Se tem uma coisa que é certa é que mulher não entende, não joga e não deve opinar em futebol. Não tem nada de machista. Certo é certo."

"Ninguém gosta de futebol feminino. Mulher comentando futebol, então, é um desastre. Nesse caso sou machista: futebol é pra homem!"

"É um absurdo dizer que a mulher não entende de futebol. É a absurda desvalorização da opinião feminina. As vozes das mulheres não são ouvidas numa cultura machista como a nossa", afirma Silvana. "Em qualquer espaço que a gente tem que mostrar que é competente, não só no futebol, tem que mostrar muito mais do que os homens para ser ouvida. É uma sociedade misógina, que não valoriza aquilo que as mulheres pensam e dizem, como se elas não fossem autorizadas a ter opinião própria e a ter conhecimento. Inclusive sobre futebol."

Alline destaca que o preconceito está enraizado no brasileiro. "O importante é a gente saber que a mudança está acontecendo. Hoje, temos um Campeonato Brasileiro com transmissões de TV e se alguém não gosta, precisa aceitar e respeitar, pelo menos. É uma realidade. Futebol é para homem, para mulher, para criança, para gay, para todo o mundo. Não dá para a gente ainda ficar nessa de que futebol é para homem."

"Se elas tivessem posado [no álbum de figurinhas da Copa] de biquíni, topless ou de lingerie eu até compraria. Mas ver mulher com calção, camiseta, meião e chuteiras? Tô fora."

"Esse tipo de comentário é o cúmulo da ignorância. Na minha opinião é ridículo", define Alline. "Isso incomoda bastante no meio do futebol feminino: as pessoas olharem para a parte física das atletas e não olhar para o quanto elas jogam. A mulher não é um objeto, ela é uma atleta que está fazendo o seu trabalho ali."

Silvana concorda e diz que a sexualização e a objetificação do corpo da mulher acontece em sociedades que não respeitam as vozes e os pensamentos femininos. "Essas mulheres são atletas, acima de tudo. Não pode ser a beleza ou a aparência que fale sobre esse espaço delas. Isso não deveria importar."

"Futebol feminino não dá. Nem as mulheres conseguem assistir a 90 minutos de toques errados, canelada e chutes sem direção. Não tem como cobrar igualdade, as mulheres nunca vão conseguir rivalizar com os homens em nenhum esporte de esforço físico."

"Vamos falar a verdade: quantas mulheres alguma vez na vida foram em um estádio, assistir um jogo de futebol feminino? É muito fácil ficar reclamando e dizendo que o futebol feminino é vítima de machismo. Na verdade, o futebol feminino é vítima de falta de interesse das próprias mulheres."

"O futebol feminino é vítima da falta de estrutura que o futebol feminino tem", declara Silvana. "Da falta de apoio das federações, das confederações e do poder público. É recente os jogos em estádios. E agora que estão acontecendo, as mulheres se interessam, sim. Não dá para comparar ainda com as grandes equipes masculinas, mas há um movimento nesse sentido e ele já é visível. Por isso, precisamos investir em divulgação e em estrutura", analisa Silvana.

Alline diz que sua experiência em campo mostrou exatamente isso: as mulheres têm, sim, interesse pela modalidade feminina. "Tenho o exemplo do Corinthians, onde joguei no ano passado. O engajamento da mulher com o time feminino é muito forte. As torcedoras gostam, elas vão aos jogos. Até porque a luta é conjunta [entre atletas e torcedoras]: é mulher e futebol."

"Equiparação salarial? Os salários pagos aos esportistas refletem o retorno de mídia que eles trazem. Se poucos assistem ao futebol feminino, por exemplo, é totalmente inviável que mulheres ganhem o mesmo que os homens."

Alline destaca que o esporte de forma geral não é bem pago no Brasil e que os valores movimentados no futebol masculino são fora da realidade de outras modalidades --não apenas do futebol feminino. "Eu não acho necessariamente que a Marta tem que ganhar o que ganha o Neymar, são coisas diferentes. Mas acho que ela tem que ganhar o que merece. As atletas no Brasil têm que ganhar muito mais do que ganham. A diferença entre homens e mulheres --incluisve em premiação-- ainda é muito grande, absurda. Pelo menos que seja justo."

Silvana lembra que a diferenciação salarial no Brasil atinge mulheres de todas as profissões, não apenas as jogadoras de futebol. "A diferenciação por gênero dos salários se dá em quase todas as profissões. As mulheres geralmente ganham menos do que os homens, nas mesmas ocupações, exatamente por serem mulheres. No futebol, essa discussão pode ser ainda mais ampla: se não tem visibilidade, não tem patrocínio. E se não tem patrocínio, não tem visibilidade. Pela primeira vez na história da Copa do Mundo feminina ela está tendo visibilidade, algumas marcas estão apresentando as atletas. Nunca antes houve propaganda na televisão ou nos jornais com jogadoras mulheres. É um cenário que está se modificando. Mas o futebol feminino no Brasil ainda é invisível e não é profissionalizado."

"É só escalar mulher feia para ser repórter de campo que ninguém agarra e beija"

"É de novo aquela ideia da sexualização, de que o homem se autoriza a tocar, a beijar, a invadir o espaço das mulheres o tempo todo. É estupro, é assédio, é abuso e isso não pode! Mas é tão naturalizado que eles fazem e ainda acham que a gente está errada quando reclama", explica Silvana.

Alline decreta: "Para mim é o cúmulo da ignorância, e a gente tem que quebrar isso. A mulher tem todo o mérito de ter conquistado espaço no esporte --como jogadora ou jornalista-- pelo trabalho dela e não por atributos físicos. A mulher não é objeto sexual. É triste e realmente eu prefiro que quem pensa dessa forma nem venha assistir ao futebol feminino".

"Vi o jogo [final da Champions League] por acaso. Achei que ia ser um porre, mas me surpreendi com o Lyon. Essas moças jogam muita bola, vale a pena assistir."

"Aí fica uma deixa que é muito legal: as pessoas falam mal, mas a verdade é que elas não conhecem o futebol de mulheres. E se prestarem atenção, vai ser exatamente isso: vão se surpreender. Dentro do campo e fora", diz Silvana. "Porque se o futebol feminino ainda hoje existe no Brasil é pela resistência dessas mulheres, a despeito de toda invisibilidade, da falta de estrutura e de profissionalização. Elas continuam jogando e sempre estiveram jogando bola, mesmo quando foi proibido. Futebol para as mulheres nunca foi concessão. É luta, é resistência. Então, se as pessoas começarem a olhar com mais atenção para o futebol de mulheres, desprovidas desse preconceito de que é ruim, de que é menor, de que é inferior, elas vão perceber que é um espaço possível para as mulheres."

Alline completa: "Existe ainda muita falta de informação e muito preconceito. As pessoas olham para o futebol feminino de uma forma que não é justa. Se você não gosta, tem apenas que respeitar, pois há espaço para todo o mundo. Mas vejo que o momento é muito positivo e que essa Copa do Mundo é o ponto chave da modalidade no país. Essa mudança da sociedade vai fazer com que a gente voe longe".

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