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Ousadia e desobediência: exposição em SP conta história do futebol feminino

Débora Miranda

Colaboração para o UOL

27/05/2019 04h00

"Às mulheres não se permitirá a prática de desportos incompatíveis com as condições de sua natureza." O trecho do artigo 54 do decreto-lei 3.199, de 14 de abril de 1941, assinado pelo então presidente Getúlio Vargas, foi responsável pela proibição das mulheres ao futebol no Brasil.

E é a partir desse momento que a exposição "Contra-Ataque! As Mulheres do Futebol" começa a contar a história de luta e resistência dessas mulheres que, desde antes do decreto-lei, já jogavam bola no país. A mostra abre nesta terça-feira (28) para o público.

"A origem do futebol feminino no Brasil não tem nada a ver com a do masculino. É muito diferente, cheia de ousadia e de desobediência".
Aira Bonfim

"A história do futebol é também a história das mulheres. E muitas delas nunca tiveram essas histórias contadas", destaca a pesquisadora e uma das curadoras da mostra Aira Bonfim.

A primeira etapa da exposição reúne recortes de jornais antigos que mostram a pressão que já havia para que as mulheres fossem vetadas no esporte. Manchetes como "o football mata a graça da mulher" e "pé de mulher não foi feito pra se metter em shooteiras" [na grafia da época] reproduzem a mentalidade de que o corpo feminino não combinava com atividades físicas.

A mostra ainda terá homenagens às jogadoras que marcaram a história do futebol e destacam atletas da nova geração, como a JujuGol - Veronica Cowie/UOL - Veronica Cowie/UOL
Imagem: Veronica Cowie/UOL

"Já havia, antes do decreto, um debate sobre o lugar da mulher. O intuito era manter a moral e os bons costumes; preservar a estética e o corpo feminino, pois o papel da mulher era gerar filhos; evitar que ela fosse exibicionista e não permitir que seu corpo ficasse masculinizado. Além disso, era dito que a mulher não tinha psicológico para suportar o esporte. O eterno conceito da histeria", afirma a antropóloga e diretora de conteúdo do Museu do Futebol Daniela Alfonsi.

Segundo ela, potências do futebol, como Inglaterra, França e Alemanha, também tiveram ações que proibiram mulheres de jogar futebol ao longo da história. "Aqui no Brasil, antes do decreto, as mulheres já jogavam. Essa proibição naturalizou que mulher não gostava de futebol e que não tinha talento."

A exposição segue, então, mostrando que a proibição não foi simplesmente acatada, na época. Década a década, dos anos 1940 a 1980, são destacadas iniciativas em todo o Brasil que mantiveram o futebol vivo, com imagens incríveis de mulheres em campo e de estádios lotados.

"Nada foi fácil, nada foi concedido. Foi tudo conquistado. Teve muita resistência e luta. Há, inclusive, relatos de mulheres presas", destaca Daniela.

A linguagem visual da mostra trabalha com tarjas vermelhas sobre fotos e textos, para simbolizar a proibição, mas também para retratar conceitos preconceituosos que, hoje, caem pouco a pouco por terra. "É o contra-ataque ao machismo, que colocou o futebol feminino como algo novo e desinteressante", afirma Daniela, destacando também o conceito usado no título da exposição.

Em 1941 o então presidente Getúlio Vargas foi responsável pela proibição das mulheres ao futebol no Brasil - Veronica Cowie/UOL - Veronica Cowie/UOL
Imagem: Veronica Cowie/UOL

Uma das revelações mais inusitadas do projeto é a de que as mulheres costumavam jogar futebol nos circos. "Havia times que excursionavam com os circos. E isso não era demérito nenhum, pois era uma atração bastante popular na época. Estamos falando de antes do rádio e da TV", conta.

No entanto, recortes de jornais da época mostram que a imprensa não perdeu a chance de ridicularizar essas mulheres, questionando: "Palhaças ou jogadoras?".

Outro destaque é a origem da palavra torcedor, que vem de um comportamento feminino. Quando as mulheres iam assistir aos jogos, levavam seus lencinhos e, tensas pela partida, começavam a torcê-los. Daí surgiu o termo.

"A gente fica naturalizando que o espaço [do futebol] não é nosso, mas até a arquibancada é legado da mulher", afirma Aira.

Uma das quebras de paradigma propostas pela exposição é uma mesa de pebolim em que os jogadores são, na verdade, jogadoras.

"Tivemos que mandar fazer, porque não encontramos nada assim pronto, não existe. É uma brincadeira de tantas décadas que a gente nem se dá conta de que a representação é só masculina", avalia Daniela. "É muito impactante pensar no feminismo dentro do universo do esporte."

A mostra ainda terá homenagens às jogadoras que marcaram a história do futebol brasileiro, como Sissi, Marta, Rosana e Emily, além de dar destaque à nova geração, personificada pela jovem Júlia Rosado, conhecida como JujuGol. Há também vídeos com grandes jogadas, camisas e até um álbum de figurinha gigante com 23 jogadoras brasileiras, formando uma seleção com destaques de todos os tempos.

A curadoria da mostra conta ainda com Aline Pellegrino, ex-jogadora e atual coordenadora do futebol feminino na Federação Paulista de Futebol; Silvana Goellner, coordenadora do Centro de Memória do Esporte da UFRGS e convidada pela CBF para atuar no plano de ação para o futebol feminino no Brasil; e Lu Castro, jornalista e uma das principais militantes em defesa do futebol de mulheres no Brasil. A equipe fica completa com a cenógrafa e cineasta Daniela Thomas.

Contra-ataque! As mulheres do Futebol
Quando: De 28/5 a 20/10. De terça a domingo, das 9h às 17h*
Onde: Museu do Futebol (praça Charles Miller, s/nº)
Quanto: R$ 15 (tem meia-entrada). Grátis às terças-feiras.
*Horários diferenciados de funcionamento em dias de jogos no Estádio do Pacaembu. Mais informações em
museudofutebol.org.br.