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1º PM transexual de SP: "Se há preconceito, isso acontece de forma velada"

O paranaense Henrique Lunardi, de 24 anos, está na PM desde 2016 - Neto Lucon/Arquivo pessoal
O paranaense Henrique Lunardi, de 24 anos, está na PM desde 2016 Imagem: Neto Lucon/Arquivo pessoal

Mariana Gonzalez

Da Universa, em São Paulo

26/05/2019 04h00

Desde criança, o policial militar Henrique Lunardi, de 24 anos pratica artes marciais e gosta de defender pessoas -- na escola, não deixava ninguém brigar com seus irmãos. Um primo que trabalhava como agente penitenciário despertou seu interesse pela segurança pública. Aos 21, o paranense prestou concurso para ocupar um cargo semelhante no estado de São Paulo, para onde se mudou aos 16 anos, mas passou primeiro em uma seleção da Polícia Militar, se apaixonou pela profissão e lá ficou: "Tranquei a faculdade de Engenharia da Computação para tomar posse. Sinto que nasci para fazer isso e não me vejo fazendo outra coisa".

Em 2017, um ano depois de se apresentar como soldado na cidade de Ituverava, a 420 quilômetros da capital paulista, no entanto, Henrique pensou que poderia ser impedido de exercer a profissão. O motivo: descobriu que era transexual, assim como o personagem Ivan, que na época era destaque na novela global "A Força do Querer", na faixa das 9.

"Pesquisei na PM e não encontrei nada sobre transição de gênero", lembra. "Pensei que seria mais difícil, que houvesse alguma resistência. Mas não. Reuni laudos da psicóloga, da endocrinologista e naquele mesmo mês comecei a terapia hormonal".

Desde que passou pela mastectomia e recebeu autorização para usar o nome Henrique na farda, em agosto de 2018, o policial ocupa um alojamento só seu, na 3ª companhia do 15º batalhão da Polícia Militar do Estado, mas tem o aval da corporação para usar o masculino junto aos colegas quando quiser. "Ainda estou no processo de tirar a camisa e me sentir confortável. Eu cresci sem poder fazer isso, então demora um pouco até entender que agora tenho um peitoral masculino", explica.

A Universa, ele conta como enfrentou o processo de transição de gênero dentro e fora da Polícia Militar, fala sobre a recepção calorosa dos colegas de batalhão e discute a relação da PM com a comunidade LGBT.

Você já estava na Polícia Militar havia um tempo quando entendeu que era um homem trans. Quais foram seus primeiros passos ao perceber que não se identificava como mulher?

Henrique Lunardi: Eu sou de uma cidade pequena, de 10 mil habitantes. Não tinha muita informação, eu cresci sem saber o que era uma pessoa trans. Para mim, só existiam as travestis. Logo que eu comecei a ler sobre o assunto e me identificar, procurei uma psicóloga, Ao mesmo tempo, comecei a pesquisar como a PM lidava com pessoas trans. Em 2017, tive uma aula de atualização jurídica em que meu comandante de companhia, que era meu chefe na época, falou sobre o decreto estadual 55588 [de 2010, que estabelece o direito de pessoas transexuais ao nome social nos órgãos públicos do Estado de São Paulo]. Anotei aquilo no caderno e comecei a pesquisar de novo, dessa vez com respaldo jurídico. Isso me deu esperança, mas eu ainda tinha muito preconceito internalizado. Além disso, antes de levar o caso para a PM, tinha que levar para dentro de casa.

E como foi este processo?

Os meus pais são separados e, na época, eu morava com a minha mãe e com o meu irmão mais novo. Foi difícil, tive dificuldades de falar como eu me sentia. Na época, "A Força do Querer" estava passando na Globo e contava a história de um homem trans, o Ivan. Com a novela, ficou mais fácil pra minha mãe entender o que estava acontecendo. Eu ligava pra ela e perguntava "mãe, você tá assistindo?". Um dia disse que eu não gostava dos meus seios e queria tirá-los. Inicialmente ela disse "não, não faz isso, você pode se arrepender depois", coisa de mãe. Eu não toquei mais no assunto por um tempo, mas percebi que ela tinha aceitado tudo mesmo quando disse "vamos marcar nosso médico". Foi importante dar à minha mãe tempo para se acostumar. Ela é uma mulher fantástica, me chama de Henrique sempre, me trata no masculino e me apresenta para as pessoas assim. Demorou um pouco, no começo ela escorregava, mas falava "calma, filho, eu vou aprender". Meu irmão foi a primeira pessoa a me dar apoio. Enquanto isso, minha irmã mais velha, que é formada em Direito e vive no Paraná, me ajudava a alterar os documentos. Foi muito bacana ver a minha família toda empenhada para me ajudar. Eu me considero muito sortudo. Essa aceitação me deu uma baita força para ir em frente e discutir esse assunto na Polícia Militar.

Você teve medo de contar à Polícia Militar que é transexual?

As pessoas trans sempre foram vistas de forma muito marginalizada. A gente tem medo mesmo e eu tive esse medo desde o começo. Mas pensei: se a polícia tem todo o aparato de saúde, vou procurar o psicólogo de lá. Esse foi o primeiro passo. Quando cheguei, falei "eu sou transexual e quero saber se esse é um motivo de expulsão da instituição". Aí ele olhou pra mim e disse, na maior naturalidade, "eu não vejo problemas". Fiquei em choque. Esperava que fosse mais difícil, que houvesse resistência. Mas não. O psicólogo ligou na central, em São Paulo, para se informar e me orientou a fazer um documento pedindo as orientações do meu chefe, o comandante de companhia. Reuni o laudo da psicóloga, da endocrinologista, anexei aos meus documentos e mandei para a PM. Naquele mesmo mês, iniciei a terapia hormonal. Foi muito rápido.

E quando você começou a usar seu nome, Henrique, na farda?

Isso não foi tão rápido. Primeiro eu tinha que pensar no nome, que [quando comecei o tratamento hormonal] ainda não tinha escolhido. Fiz isso junto com a minha mãe. Decidimos por Emanoel Henrique e mandamos os documentos para a PM pedindo a troca no colete. Até então, eu usava Lunardi, passei pouco mais de um ano com esse nome na farda. Fiz a mastectomia em julho de 2018 e, em agosto, quando voltei de férias, recebi o despacho autorizando o Henrique. Demorou pra caramba, chegou depois de uns dez meses. Sabe por quê? Porque eu fui o primeiro. O próprio sistema da polícia não tem campo para fazer alteração de nome, eles estão desenvolvendo isso agora. A partir daí, sim, tive que me adaptar às novas regras, como usar o usar o fardamento masculino, o corte de cabelo aparado mais baixo, essas coisas. Os homens também não podem usar brincos ou outros acessórios que são permitidos às mulheres policiais.

Então seu caso abrirá portas para outras pessoas trans ingressarem na corporação, né?

Exatamente. Eu me sinto muito feliz não por ser o primeiro, mas porque outras pessoas não vão precisar passar por tudo isso que eu passei. Para elas, esse reconhecimento virá muito mais rápido e muito mais fácil. Elas terão a mesma chance que eu, mas sem o medo que eu senti de sofrer preconceito, de ser barrado [na Polícia Militar]. Às vezes as pessoas perguntam por que eu estou me expondo dessa maneira, afinal sou visto como homem, não preciso contar para ninguém que sou um homem trans, a não ser para quem vai se relacionar comigo. Mas faço isso para encorajar outras pessoas trans que têm medo. Eu sei que, se eu procurar, vou encontrar muitas ofensas por aí, mas nas redes sociais só recebo comentários positivos. Isso me dá esperança.

E fora das redes sociais, entre seus colegas de companhia, como o Henrique foi recebido?

Aqui no batalhão em que eu trabalho, aparentemente todos foram bem receptivos. Quando eu me apresentei aqui na cidade eu namorava uma garota, então eles me viram como uma garota que gostava de garotas e, na época, foi bem tranquilo. Durante todo esse processo [de transição de gênero] a PM me deu apoio e orientou os policiais da minha unidade sobre como eu deveria ser chamado a partir daquele momento. Olha o resguardo que a instituição me deu!

Isso te poupou de possíveis constrangimentos como ter que explicar aos colegas as questões pelas quais estava passando?

Não necessariamente. Alguns ficaram curiosos e se sentiram à vontade para perguntar o que estava acontecendo. Percebi que muitas vezes acabam confundindo sexualidade e identidade de gênero. Isso ainda é muito comum e eu tinha que explicar. Foi legal porque quem se aproximou de mim, fez isso de forma respeitosa. Por isso, eu nunca tratei de forma ríspida ou deixei de explicar. Sempre tentei ser esse elo de informação, o mesmo que eu não tive na minha cidade. Durante as mudanças que foram acontecendo comigo o pessoal acabava brincando comigo. Por exemplo, a minha voz mudou, foi uma das primeiras coisas, e o pessoal falava "nossa, a voz do Henricão está mais grossa que a minha", essas coisas.

E você não levava a mal?

Não, eu vejo de forma saudável. Eles não estavam me ofendendo, eles estavam vendo as minhas mudanças e isso me deixava mais feliz ainda. Eles foram muito receptivos e isso foi importante para eu me sentir confortável no trabalho. Meus colegas viram que eu continuei sendo o mesmo profissional, executando as mesmas tarefas. Hoje, inclusive, eles corrigem as pessoas sobre como devem me tratar quando alguém se refere a mim como "aquela policial".

Você chegou a sofrer algum tipo de constrangimento ou foi excluído de alguma forma no ambiente de trabalho?

Não que eu tenha percebido. As pessoas não têm o que fazer e falam pelas costas. Eu sei que deve existir isso, então não posso dizer que foi totalmente sem preconceito, mas se acontece é de forma velada. Na minha frente, todo mundo respeita.

Recentemente, tivemos a denúncia de um youtuber gay que teria sido agredido por um grupo de policiais até ficar desacordado, em São Paulo. Esta é uma conduta comum na PM? Como você vê a relação entre a Polícia Militar e a população LGBT?

A Polícia Militar é formada por pessoas, que podem ou não trazer preconceitos. Nós, policiais, precisamos conhecer as normas e saber o que estamos fazendo. Somos representantes do estado e, por isso, se temos algum preconceito, temos de saber lidar com isso em serviço. Então, a meu ver, [o caso do youtuber] é uma conduta do indivíduo, que deve responder por ela.