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Crianças em desfile para serem adotadas: o que pode acontecer com elas?

Crianças e adolescentes disponíveis para adoção desfilam em evento em Cuiabá - Reprodução/Facebook
Crianças e adolescentes disponíveis para adoção desfilam em evento em Cuiabá Imagem: Reprodução/Facebook

Luiza Sahd

Colaboração para Universa

23/05/2019 04h00

Um desfile de moda promovido pela Associação Mato-grossense de Pesquisa e Apoio à Adoção (AMPARA), em parceria com a Comissão de Infância e Juventude (CIJ) da Ordem dos Advogados do Brasil -- Seccional Mato Grosso (OAB-MT) levou crianças e adolescentes entre 4 e 17 anos que buscam família adotiva para "desfilar" no Pantanal Shopping. A iniciativa chocou psicólogos.

O evento de nome "Adoção na Passarela" realizou sua segunda edição na noite desta terça-feira (21). Por lá, as crianças que esperam adoção foram "maquiadas e produzidas" para serem apreciadas ao público presente no shopping.

A presidente da Comissão de Infância e Juventude da OAB-MT e da Comissão Nacional da Infância, Tatiane de Barros Ramalho, abriu o evento com o seguinte discurso: "Será uma noite para os pretendentes -- pessoas que estão aptas a adotar -- poderem conhecer as crianças. A população em geral poderá ter mais informações sobre adoção e as crianças em si terão um dia diferenciado em que elas irão se produzir, cabelo, roupa e maquiagem para o desfile. Na última edição, dois adolescentes, um de 14 e o outro de 15, foram adotados. E esperamos novamente dar visibilidade a essa crianças e adolescentes que estão aptas a adoção. E como sempre dizemos: o que os olhos veem o coração sente".

Visibilidade X Desumanização

As notícias sobre o evento provocaram um debate intenso sobre a desumanização das crianças que desfilaram.

O advogado e escritor Eduardo Mahon pediu desculpas à AMPARA e comparou o desfile a uma feira de escravos frequentada por latifundiários em busca de "trabalhadores", os quais avaliavam pelo porte e pelos dentes.

Nas redes sociais, também não faltaram comparações entre a "Adoção na Passarela" e feiras de adoção de animais, além da repetição da pergunta que nenhum dos responsáveis pelo evento respondeu até o momento: como é o impacto de uma experiência dessas para a criança ou o adolescente que se produz e, depois, não é acolhido por nenhuma família?

Exposição pode ser traumática

Na opinião de Sandra Lia Nisterhofen Santilli, psicopedagoga e Conselheira Vitalícia da Associação Brasileira de Psicopedagogia Seção São Paulo, o "Adoção na Passarela" pode ser bem traumático para os jovens que desfilaram. "Até o momento custo a crer que tenha ocorrido de fato", lamentou.

Santilli explica que o aspecto físico das crianças é um critério descabido na decisão de algo tão sério como a adoção. Para a especialista, questões comportamentais deveriam ser o foco do primeiro contato entre quem quer adotar e os jovens que estão aptos para encontrar um lar. Em uma situação como o desfile no shopping, com crianças "produzidas", o risco é criar a ilusão de que filhos podem ser idealizados, perfeitos, sem questões de saúde ou direito a demandar maiores cuidados -- inclusive do ponto de vista psicológico.

Para além da escolha superficial (com base na aparência das crianças), Santilli lembra que esse tipo de evento pode ser extremamente frustrante para os envolvidos: "As crianças que estavam ali podem ter tido um dia divertido com a preparação, muita expectativa quanto ao objetivo... mas, quem cuidará dos que não forem escolhidos?", questiona.

O desfile, na visão da especialista, é uma iniciativa que reforça o sentimento de rejeição e abandono nas crianças que, apesar de todo o esforço, saem do evento sem receber a "aprovação" de quem quer adotar. "A falta de cuidado e proteção com o emocional das crianças é assombrosa", resume.

Mayra Aiello é psicologa e mãe adotiva. Da perspectiva de quem viveu a experiência da adoção -- um processo longo e repleto de cuidado por parte das famílias e do Estado --, a iniciativa "Adoção na Passerela" foi bem-intencionada, mas a execução deixou as crianças vulneráveis do ponto de vista emocional.

"É importante colocar a adoção em pauta, mas ainda há mitos que precisamos desconstruir, como o de achar que famílias vão aos abrigos escolher crianças pela carinha e dizendo 'eu quero aquela'", explica. A psicóloga esclarece que o sistema de adoção já foi assim, mas atualmente a busca é por famílias ideais para crianças que precisam de acolhimento -- e não de crianças para famílias que desejem escolher um filho.

Atualmente, o processo de adoção pode levar alguns anos justamente para evitar que crianças não sejam escolhidas pela aparência, por exemplo, e sofram novos abandonos (desistência da adoção) quando comecem a apresentar questões comportamentais inesperadas. O processo de aproximação entre pretendentes e as crianças leva meses, justamente para que a família esteja ciente e respeite a história da criança que chega à nova casa.

Por que precisamos falar de adoção?

O próximo sábado (25) é marcado pelo Dia Nacional da Adoção. Essa é uma excelente oportunidade para debater os tabus em torno do tema. Infelizmente, a ideia que temos sobre o processo de adoção ainda é muito baseada na ficção -- e famílias que se formaram por essa via ainda têm que lidar com muito preconceito e desinformação.

Para Aiello, entender e acolher crianças que precisam de um lar é impossível sem que a sociedade aprenda a ter respeito pelas histórias dessas famílias. "É comum tentar negar ou apagar o passado de abandono da pessoa adotada, mas o caminho é justamente o oposto: a história de quem passou por adoção pode ser triste, mas é a história legítima dela. Daí a importância, também, de não estigmatizar as mães que entregam os filhos aos abrigos", esclarece.

A psicóloga lembra de uma questão importante sobre como tratar crianças adotadas de forma digna. "Digo que minha filha tem duas mães. A que deu a vida a ela e eu -- que dou amor. Famílias que 'abandonam' filhos são geralmente famílias que já foram abandonadas pelo Estado. Dessa forma, fazem um gesto nobre entregando essa criança para que ela possa encontrar uma família substituta que realmente possa cuidar dela", conclui.

Até o fechamento da reportagem, a AMPARA não respondeu ao contato do UOL.