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Sapatão, bicha, viado: os possíveis motivos para chamarem LGBTs assim

O filme "Bambi", da Disney, teria contribuído para a associação entre veados e gays   - Divulgação
O filme "Bambi", da Disney, teria contribuído para a associação entre veados e gays Imagem: Divulgação

Marcelo Testoni

Colaboração para Universa

24/04/2019 04h00

Seja qual for o motivo, ser chamado por estranhos de "viado" ou "bicha" (no caso de gays) e de "sapatão" (no caso de lésbicas) soa ofensivo. Porém, entre LGBTs, esses termos são usados como gírias ou brincadeiras, sem nenhum intuito de agredir ou constranger.

O que ninguém sabe ao certo é quando ou como essas expressões surgiram. Fato é que existem várias teorias para explicá-las --e até mesmo os especialistas em linguística divergem entre si. "Com relação a esses três termos, é importante dizer que fixar no tempo e no espaço sua origem é algo bastante complicado. Por esse motivo o mais adequado é falar de 'possíveis origens'", explica Stela Danna, doutoranda em linguística pela USP e pesquisadora do Centro de Documentação em Historiografia Linguística (CEDOCH-DL/USP).

Veado ou desviado da "normalidade"

Em se tratando de "viado", esse termo aparece no dicionário como uma forma antiga de chamar um tecido de lã, com riscas ou veios. "Já a alternância da grafia 'viado' ou 'veado' para designar homens homossexuais indica duas possíveis origens. Há quem insista em usar 'viado', por acreditar que o termo teria vindo das palavras 'desviado' ou 'transviado', ou seja, pessoas que teriam se 'desviado de uma normalidade', ideia preconceituosa e bastante difundida durante a ditadura militar. No entanto, o mais provável é que 'viado' tenha vindo da palavra 'veado', usada para designar um animal mamífero, veloz, delicado e tímido", comenta Stela.

A pesquisadora da Universidade de São Paulo (USP) também aponta como principal referência de veado o personagem Bambi, lançado por Walt Disney em 1942. "Além de ter características ainda vistas como sinais de fragilidade e muitas vezes associadas ao feminino, os veados, durante o período de reprodução e sem poderem contar com uma fêmea, acabam depositando o esperma em outros veados. Todos esses aspectos teriam contribuído para que se associasse o termo aos homens homossexuais", acrescenta Stela.

De fêmea do veado à prostituta

Já o termo "bicha", de acordo com Stela e James Green, historiador especializado em estudos latino-americanos e ativista dos direitos LGBT, remontaria à corça, fêmea do veado, que em francês é chamada de "biche". "Esse termo começou a ser usado no Brasil no início do século 20", explica Stela.

"Parece plausível que os homens que frequentavam a subcultura estivessem simplesmente fazendo um trocadilho com a palavra 'viado', ao que adotaram um toque de sofisticação com o uso do termo francês. Além disso, 'biche' era também usado na França como um termo afetuoso para uma jovem mulher", observa Green em seu livro "Além do Carnaval: A Homossexualidade Masculina no Brasil do Século 20". Segundo Green, bicha também era empregado no passado como sinônimo de prostituta e seria possível que prostitutos efeminados costumassem se referir, em tom de brincadeira, a seus amigos e colegas como 'bichas'.

"É importante perceber que, assim como 'viado', a palavra bicha também está ligada ao feminino. Esses termos acabaram sendo entendidos como sinônimos de passividade e fragilidade, ideias que caracterizavam as mulheres em um mundo dominado pelos homens", diz Stela, lembrando que a partir da década de 60, pessoas machistas e conservadoras se apropriaram do termo para usá-lo contra homossexuais, atribuindo-lhe uma carga pejorativa.

Adeptas de sapatos masculinos

A marchinha "Maria Sapatão" ajudou a difundir o termo associado a lésbicas pelo Brasil - Reprodução/TV Globo - Reprodução/TV Globo
A marchinha "Maria Sapatão" ajudou a difundir o termo associado a lésbicas pelo Brasil
Imagem: Reprodução/TV Globo

No caso de "sapatão", as possíveis origens divergem de época e contexto, mas, em comum, remontam a atitudes de transgressão e resistência. "A primeira delas remete aos poemas sobre amores lésbicos do poeta Gregório de Matos (1636 - 1696), em que aparece a figura de uma mulher chamada Luiza Sapata. A segunda hipótese parece estar relacionada aos calçados masculinos, pois na década de 1970, com uma nova retomada do movimento feminista, algumas mulheres teriam passado a usar esses 'sapatões', em vez dos modelos femininos. Os calçados masculinos eram maiores, menos delicados e mais confortáveis. Essas mulheres então acabaram sendo identificadas como 'sapatão'", diz Stela.

Quem tem opinião semelhante à de Stela sobre a origem baseada nos "sapatões masculinos" é o etimologista Reinaldo Pimenta, que no livro "A Casa da Mãe Joana 2: Mais Curiosidades nas Origens das Palavras, Frases e Marcas" diz que a expressão "surgiu na década de 1970, quando as mulheres com orientação sexual alternativa (lésbicas) tinham predileção por usar esse tipo de calçado, mais caracteristicamente masculino".

Já nos livros "A Vida Íntima das Palavras" e "De Onde Vêm as Palavras", outro etimologista, Deonísio da Silva, lembra que "em décadas passadas, conhecida música de programa de auditório dizia: 'Maria sapatão, sapatão, sapatão. De dia é Maria, de noite é João'". Porém, segundo a pesquisadora Stela, a marchinha de carnaval "Maria Sapatão", escrita por João Roberto Kelly e cantada pelo apresentador Chacrinha, nos anos 1980, não lançou o termo associado a lésbicas, mas teve o papel significativo de popularizá-lo por todo o Brasil.