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Papo de vagina

Sagrado ou maldição? Como a menstruação foi tratada ao longo da história

Natália Eiras

Da Universa

16/11/2018 04h00

Metade da população mundial, de cerca de 7,6 bilhões de pessoas, sangram ou já sangraram mensalmente. Tão comum e natural quanto menstruar é a ideia de que os dias do ciclo são os mais desagradáveis do mês, apesar de entendermos que ele é muitíssimo importante para a saúde do corpo feminino. Mas a relação de amor e ódio que temos com a menstruação nem sempre foi assim. Antigamente, este relacionamento passeava entre extremos: a humanidade já celebrou o ciclo com festas pela fertilidade e já condenou mulheres menstruadas à fogueira. Veja abaixo como a menstruação foi do sagrado à maldição ao longo da história:

As Tesmofóridas eram festas da Grécia Antiga que celebrava a menstruação - Reprodução - Reprodução
As Tesmofórias eram festas da Grécia Antiga que celebrava a menstruação
Imagem: Reprodução

Sangrando a terra

Para os povos antigos, a menstruação era muito poderosa para manter a terra fértil e garantir boas safras, como está registrado nos papiros de Ebers, um dos tratados médicos mais antigos. Na Grécia Antiga de 6.000 a.C, o sangue da menstruação era parte central de grandes festas chamadas Tesmofórias. Mulheres se isolavam de homens durante nove dias em um ritual de purificação, comendo alho para repelir os indivíduos do gênero oposto. Quando menstruavam, elas ofertavam o sangue para fertilizar a terra. Era uma espécie de troca entre duas procriadoras: a mulher e a Mãe Terra. Esta relação entre o sangue menstrual e a fertilidade influencia algumas tribos até os tempos atuais. Na Austrália, os homens do povo Yolngu fazem cerimônias que simulam a menstruação.

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Mulher enfeitiçada

Por volta de 200 a.C, no entanto, houve uma mudança de paradigmas. Não se sabe bem o porquê, mas a mulher menstruada da Grécia Antiga começou a ser considerada possuída por um espírito maligno. Na época, acreditava-se que, se trocasse olhares com o reflexo de uma mulher menstruada, você poderia ser enfeitiçado. Segundo a psicóloga e professora da Faculdade de Medicina do ABC Maria Regina Domingues de Azevedo, autora de tese sobre os aspectos culturais da menstruação, a falta de informações pode ter sido a fonte desta crença. “Os gregos antigos sabiam apenas que a menstruação tinha algo a ver com a capacidade da mulher engravidar, porém o fato de ela sangrar por vários dias seguidos e não morrer era um mistério”, diz a especialista. Para eles, apenas algo maldito poderia explicar a sobrevivência da mulher após a menstruação.

Controle da sexualidade

De acordo com Regina Figueiredo, socióloga e antropóloga especialista em saúde sexual reprodutiva, o crescimento das sociedades patriarcais a partir de 5.000 a.C e o controle da sexualidade podem ter contribuído para que a menstruação se tornasse um tabu. “Na sociedade patriarcal, há a necessidade de saber que a criança é filho do homem provedor”, explica a especialista. “É nesse momento que é dado um novo significado à menstruação, como algo a ser controlado junto com a sexualidade da mulher. A menstruação é um dos mistérios e perigos femininos”. 

Na fogueira

De acordo com especialistas, mulheres menstruadas chegaram a ir para a fogueira durante a Idade Média - Reprodução - Reprodução
De acordo com especialistas, mulheres menstruadas chegaram a ir para a fogueira durante a Idade Média
Imagem: Reprodução

Na Bíblia, a mulher é biologicamente impura por ter consumido o fruto proibido no Jardim do Éden. Durante a “Era das Trevas”, o catolicismo influenciou fortemente a forma que a população olhava para a menstruação. “Tornou-se uma coisa que fazia a mulher ser meio temida, a ponto de elas serem queimadas por isso. Eram consideradas bruxas pela Igreja”, fala a psicóloga Maria Regina. O artigo “Atitudes relacionadas à menstruação e ao sangue menstrual na Inglaterra do Período Elisabetano”, de Bethan Hindson, diz que a Igreja chamava de “tampão monstruoso” as toalhinhas usadas pelas mulheres para lidar com o sangramento. “E ter uma relação com uma mulher menstruada era a pior coisa do mundo, uma coisa inconcebível. Tinha essa visão de que a mulher menstruada era demoníaco”, diz Maria Regina.

Tecnologia para menstruação

Mulheres de cada época tiveram seus próprios meios para lidar com o sangue menstrual. No Egito Antigo, elas usavam papiros como absorventes. Na Roma Antiga, chumaços de algodão serviam como tampões internos. As toalhinhas higiênicas foram a opção favorita desde a Idade Média até 1918. Demorou centenas de anos para descobrirem uma forma eficiente de conviver com o sangramento, quando enfermeiras francesas da Primeira Guerra Mundial descobriram que bandagens de algodão eram ótimas para estancá-lo. Foi assim que a marca norte-americana Kotex criou o primeiro absorvente interno descartável, em 1930.

Filme da Disney

Apesar de ser muito mais prático do que as toalhinhas higiênicas, os absorventes descartáveis da Kotex não foram um sucesso espontâneo. Para popularizar o produto, a marca se uniu à Disney, em 1946, para fazer uma animação de dez minutos chamada “A História da Menstruação”. Narrado pela atriz Gloria Blondell, foi o primeiro filme a usar a palavra “vagina” e foi exibido, até os anos 1960, em aulas de saúde do Ensino Médio nos Estados Unidos. O vídeo precedeu uma mudança que viria com os hippies.

Absorventes no supermercado

Em 1960, o movimento da contracultura leva mulheres feministas a se reconectarem com a natureza dos seus corpos. “Esse grupo trouxe, entre outras coisas, a revisão da menstruação, do controle da sexualidade e do direito do prazer da mulher”, fala a antropóloga Regina Figueiredo. “Elas percebem que a feminilidade não é algo negativo e que a menstruação é natural”. Assim, as mulheres retomam o controle do próprio corpo e a saúde da mulher se torna uma pauta de políticas públicas. E esse movimento da classe média é tão massificado que muda o comportamento de consumo das mulheres. “Elas costumavam esconder os absorventes em sacos de pão quando os compravam em farmácias. Mas essa reviravolta da contracultura pode ser visualizada quando os absorventes passaram a ser expostos nas gôndulas dos supermercados”, explica a especialista. “Quando a mulher pega o pacote e coloca no carrinho para todo mundo ver, ela está dizendo que menstruar é completamente normal”.

Copinho da contracultura

Coletor menstrual - iStock - iStock
De acordo com especialistas, instrumentos como o coletor podem revolucionar forma que lidamos com a menstruação
Imagem: iStock

Naturalizar a menstruação não mudou, no entanto, a ideia de que “aqueles dias” são os piores do mês. Um levantamento da marca Sempre Livre, da Johnson & Johnson, em parceria com a KYRA Pesquisa & Consultoria, mostrou que 57% das mulheres de 14 a 24 anos ainda se consideram sujas durante o período menstrual. Porém, de acordo com as especialistas consultadas pela Universa, o uso de instrumentos como o coletor menstrual pode ajudar as mulheres a fazerem as pazes com a menstruação. “O copinho, por exemplo, é uma forma da pessoa tomar contato com o seu corpo, com você mesma. Entender que esse sangue menstrual não é uma coisa nojenta, feia, horrível”, diz a professora Maria.

Dia Mundial na Menstruação

Um efeito da onda de aceitação da menstruação como algo natural é a criação do Dia Mundial da Menstruação (28 de maio), idealizado pela ONG Wash United, em 2014, que visa aumentar a discussão sobre o assunto. Regina Figueiredo afirma, no entanto, que este ainda é um movimento minoritário. “Surgiu essa contracultura mais natureba, que vai contra o ciclo menstrual controlado por remédios. Mas ela ainda é muito elitizada, não tomou a sociedade como a dos 1960”, fala a especialista. Ambas, no entanto, concordam que, em pequenos passos, mais tabus sobre menstruação devem ser derrubados. “Vamos ter as Tesmofórias tudo de novo”, ri Maria Regina. 

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