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Feminismo que acolhe: a história da criadora da Casa da Mulher Trabalhadora

Eleutéria Amora da Silva  - Acervo pessoal
Eleutéria Amora da Silva Imagem: Acervo pessoal

Beatriz Santos e Rita Trevisan

Colaboração para Universa

23/08/2018 04h00

Nordestina, nascida no Ceará, Eleutéria Amora da Silva, 61, está há quase quatro décadas no Rio de Janeiro, onde veio buscar emprego, depois de se formar em História, e recomeçar a vida após uma separação. Mãe de três filhas, não demorou muito para que ela compartilhasse de um sentimento comum a todas as mães: culpa e sofrimento por ter que deixar as crianças para trabalhar.

“Em alguns momentos eu não sabia o que fazer com aquelas criaturinhas me olhando”, fala. Em outros, a questão era mais prática, com quem deixar as crianças enquanto eu dava aulas? Dessa necessidade, nasceu o primeiro esboço do que é hoje a Camtra (Casa da Mulher Trabalhadora), organização na defesa dos direitos das mulheres, sediada no Rio.

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“A Camtra surgiu em março de 1997 como um grupo de mulheres que se revezava para cuidar dos filhos das outras que iam trabalhar”, conta Eleutéria, a fundadora e coordenadora geral da casa. A rede de apoio informal não durou muito, porém, porque as demandas maternas eram mais numerosas do que o tempo livre que cada uma tinha disponível para doar. Contudo, foi o impulso que ela precisava para investir em uma estrutura de acolhimento para mulheres, como ela mesma descreve. “Na época, 21 anos atrás, o feminismo não era tão defendido ou divulgado”, fala.

Hoje, a Casa da Mulher Trabalhadora atua em quatro áreas: direitos sexuais e reprodutivos, educação para autonomia, trabalho das mulheres e violência contra as mulheres. Oferece acesso à educação sexual e métodos contraceptivos, para empoderar mulheres do próprio corpo; promove cursos para mulheres jovens e educadores, também produz cartilhas, sobre igualdade de gênero, violência contra as mulheres, combate ao racismo e respeito à diversidade sexual; orienta mulheres sobre leis e direitos trabalhistas; acolhe e auxilia as vítimas de violência doméstica –desde as que precisam de orientação para denunciar um parceiro violento até aquelas que, por ora, só querem ser ouvidas.

“Recebo, diariamente, ligações de mulheres que estão em uma situação de violência, mas não conseguem se separar. Por questões financeiras, porque tem crianças envolvidas, por medo de denunciar, de se expor... Tem mulheres que sofrem abuso e aí elas me perguntam como proceder em caso de estupro, como sair de casa”, conta Eleutéria. Mulheres vítimas de assédio no trabalho também se aconselham na Camtra. “A dúvida mais comum é como provar. Às vezes, elas até duvidam de si próprias, pensam que estão vendo coisa onde não tem, exagerando, têm medo de contar para o companheiro. A gente orienta, encaminha para a assistência jurídica e, principalmente, nós as ouvimos”, fala. 

Em 2016, de acordo com o relatório de atividades, a organização beneficiou o total de 1.931 mulheres, sendo 593 jovens. As outras 1.338 são mulheres acima de 30 anos. “Gostaríamos de fazer mais, porém, faltam recursos. Não abrigamos mulheres, por exemplo”, fala.

Casa da Mulher Trabalhadora - Acervo pessoal - Acervo pessoal
Imagem: Acervo pessoal


Mas, quando necessário, fazem o possível para que quem as procura não fique desamparada. “Há pouco tempo, chegou uma mulher que estava há dias dormindo na rodoviária, sem ter para onde ir e, antes de qualquer coisa, pediu por um banho. De pronto, nós a ajudamos, deixamos que ela tomasse o banho e ela dormiu no sofá. Nós a auxiliamos até que conseguisse um emprego, que também ajudamos, ao inscrevê-la em vagas”, diz.

Do Ceará para o mundo

Nesses 21 anos à frente do trabalho da Camtra, Eleutéria já correu muito atrás de recursos financeiros. Nos anos de 2003 e 2008, foi para a Europa atrás de organizações que ajudam e apoiam essas causas. Assim, conseguiu o dinheiro para montar o espaço onde a casa está, na Lapa. “Temos uma sala própria onde funciona nosso escritório e uma outra sala alugada para a realização das atividades”, descreve. A casa é mantida por doações das associadas, colaboradoras e por financiamentos conseguidos por meio de editais. 

Ela também viaja muito para divulgar a causa: palestra, lidera oficinas e participa de eventos para tratar os direitos e violação das mulheres. “Se eu não andar por aí e aceitar os convites que me fazem, ninguém vai me ver, ninguém vai saber o que fazemos”, explica.

Feminista à sua maneira

Eleutéria conta que atuava como feminista muito antes de usar o termo para se referir a si mesma ou a qualquer outra mulher. “Sempre me achei estranha, uma transgressora, muito cedo eu dizia para a minha mãe que não ia casar, por exemplo, pois não achava uma vantagem. Mas, naquela época, o casamente era obrigatório, não existia o contrário”, fala.

Já no Rio, morou oito anos com outra pessoa, mas a experiência a levou a desistir de vez desse modelo de relacionamento. “Por muito tempo, eu me perguntei porque eu não era igual às outras mulheres, que sorriam com os homens por aí, felizes da vida. Eu não gosto da cobrança, sabe? De dar satisfação. É esgotante trabalhar, cuidar das crianças e do homem, porque ele vem no pacote para o cuidado. Eu prefiro só namorar”, fala.

Hoje, ela batalha para que mais mulheres possam assumir suas próprias vontades e tenham chances de buscar a realização pessoal e profissional. “Eu jamais vou chegar em uma pessoa questionando se ela é feminista ou não, mas eu quero que todos saibam que as conquistas que tivemos para as mulheres, só conseguimos com muita luta, saindo de casa e enfrentando, batendo de frente mesmo”, diz.