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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


Não é popular defender o crucificado da vez, diz ex-advogada de Odebrecht

Dora Cavalcanti - Marcelo Justo - Marcelo Justo
Imagem: Marcelo Justo

Marcela Paes

Da Universa

11/03/2018 04h00

“Muita gente pensa que a advocacia criminal é pesada, mas ela tem um aspecto bonito, em que você aprende a olhar para os casos tentando enxergar um lado humano e de tolerância.” É com essa frase que a advogada Dora Cavalcanti, 49, explica, com a voz mansa e um sorriso no rosto, um pouco do próprio trabalho. Conhecida por atuar em casos como o do empreiteiro Marcelo Odebrecht, a defensora também transita por mundos bem diferentes do das grandes ações milionárias.

No início de março, Dora foi responsável pela libertação de Atercino Ferreira de Lima Filho. O vendedor estava na cadeia há um ano, acusado injustamente de abusar sexualmente dos filhos. Por meio do Inoccence Project, ONG americana trazida ao Brasil pela advogada, os próprios filhos do acusado pleitearam, sem nenhum custo, a revisão criminal, que o liberou da prisão. 

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“Foi fantástico conseguir isso. Desde a primeira vez que entrevistamos o Andrei e a Aline [filhos do acusado], eles deram com muita riqueza de detalhes os porquês, o que vivenciaram tão pequenos, contaram que foram obrigados a inventar essa mentira contra o pai’, afirma ela sobre o caso.

Mesmo acostumada a críticas, a advogada classifica como "sofrido" o processo de trabalhar em causas com grande apelo midiático.

Atualmente, ela também se prepara para convencer um corpo de jurados de que o empresário Sergio Nahas - acusado de matar a mulher, Fernanda Orfali - não cometeu o crime Segundo a defesa, Fernanda teria se matado. Para a acusação, o réu teria assassinado a mulher, quando ela descobriu que ele usava drogas e a traía com travestis.

“A acusação pode ser a mais escabrosa possível, mas o meu trabalho parte do princípio de que não necessariamente o que está sendo dito, no momento inicial, é a verdade sobre aquele caso”, afirma.

Leia a seguir a entrevista com Dora.

Universa: A primeira causa que você ganhou com o Inoccence Project foi a libertação do Atercino. Como foi isso?

Dora Cavalcanti: O Inoccence Project, nos Estados Unidos, tem 25 anos e é uma ONG grande e bem estruturada. Tinha um sonho antigo de trazer esse trabalho, que é todo feito por advogados voluntários e alunos, para o Brasil. Já recebemos 56 pedidos para que iniciássemos revisões, mas esse caso do Atercino foi o primeiro no qual conseguimos completar toda a etapa de checagem e verificação. Quem procurou a gente foi o Andrei, filho do Atercino. Depois, ele trouxe a irmã. Desde a primeira vez que nós entrevistamos o Andrei e a Aline, eles deram com muita riqueza de detalhes os porquês, o que vivenciaram tão pequenos, contaram que foram obrigados a inventar essa mentira.

Universa: Em casos de grande apelo popular, como a defesa de executivos acusados na Lava Jato, é comum as pessoas darem palpite ou reclamarem com você?

Dora: Sim, coitado do meu marido. É comum a gente estar em algum lugar, e as pessoas quererem puxar esse tipo de assunto. Em casa, ninguém mais aguenta. O universo do direito penal está extremamente imbricado com a vida das pessoas. Ele trata de questões realmente vitais, como liberdade, acusações sérias… Portanto, é normal. Também estou muito acostumada a críticas. Não é propriamente uma questão popular você defender o atacado ou o crucificado da vez.

Universa: A pressão de trabalhar nesses casos é muito maior?

Dora: Muito maior. Quando todos os olhos estão voltados para um caso, não só a responsabilidade é maior, mas também a cobrança. As dificuldades se multiplicam. Já existe uma visão pré-constituída e, muitas vezes, o cliente não começa no zero a zero. Não é o meu traço forte, definitivamente. Gosto muito do trabalho mão na massa, adoro vivenciar o processo: a audiência, a sustentação oral, despachar... Vou alegre cuidar do dia a dia, mas essa questão das causas de grande apelo popular é sofrida.

Universa: Você trabalhou com o advogado Márcio Thomaz Bastos, considerado um dos melhores criminalistas do Brasil. O que aprendeu com ele?

Dora: Aprendi quase tudo com ele. Tive muita sorte, porque fui trabalhar com o Márcio do terceiro para o quarto ano da faculdade. Tive a experiência de trabalhar com alguém que tinha um amor enorme pela profissão. Claro, a advocacia criminal é tensa, exaustiva e demanda muito, mas, para ele, o exercício profissional era a razão de viver. O Márcio também sempre foi muito de delegar. Confiava no trabalho das pessoas. Sempre que eu estava com dúvidas ou medo, ele me perguntava o que deveríamos fazer. Eu dizia, e ele sempre respondia: 'Acho ótimo! Pode ir lá, e volta com o problema resolvido'.

Universa: O procurador federal Hélio Telha, do MPF (Ministério Público Federal), chegou a dizer, referindo à defesa de Odebrecht, que você devia desculpas ao Brasil. Como encarou isso?

Dora: Infelizmente, acho que existe um esforço de tornar pessoal uma discussão que deveria ser respeitosa do papel que cada um desenvolve nessa mecânica da Justiça. Hoje, isso está um pouco abalado nos casos de criminalidade econômica, nesses que a gente assiste. Pela essência do nosso processo, temos a figura do juiz no meio, equidistante, a defesa, representando os interesses do acusado, e a acusação, que, em tese, representa o fiscal da lei. Nesses casos mais recentes, nos quais fui extremamente criticada, talvez minhas manifestações tenham sido lidas como um desafio ou pedido de briga, mas não é isso.

Universa: Você acha que existe muito machismo no meio judiciário?

Dora: Na área criminal, ainda estamos derrubando barreiras. Tive muita sorte por ter tido a escola do Márcio [Thomaz Bastos] e ter aprendido em um escritório pequeno. Fiquei em uma bolha, protegida. Milito na área criminal há 25 anos e tenho um diálogo franco e direto com os meus colegas, mas o fato é que, na hora do vamos ver --de um julgamento importante, da composição dos tribunais--, você ainda sente uma diferença. Sempre são menos mulheres do que homens nesses ambientes e, muitas vezes, a mulher é vista como a segunda pessoa da causa, está fazendo o trabalho, mas ainda não está no processo decisório. Acho que isso tende a mudar. Dos 20 alunos que selecionamos para o Inoccence, 15 são meninas.

Universa: Existe alguma causa com a qual você não trabalharia por questões pessoais?

Dora: Tenho forte convicção no predicado de que todo mundo tem direito à defesa. Não tenho um hall em que eu diga 'nessa causa, não trabalho', mas tem causas em que tenho mais dificuldade. A gente tem de reconhecer as próprias limitações. Sou mãe de dois adolescentes. Para mim, por exemplo, trabalhar em casos de tráfico é dificílimo. Tenho uma resistência pessoal muito grande. A acusação pode ser a mais escabrosa possível, mas o meu trabalho parte do princípio de que não necessariamente o que está sendo dito no momento inicial é a verdade sobre aquele caso. Muita gente pensa que a advocacia criminal é pesada, mas ela tem um aspecto bonito, de aprender a olhar para os casos tentando enxergar um lado humano, de compreensão e tolerância. Isso é uma nota positiva no fim do dia.