Fui abusada pelo meu pai e desejei matá-lo, mas só superei quando o perdoei
Durante anos, a youtuber Vanessa Araújo se culpou pelos abusos sofridos nas mãos do pai. Mas ela conseguiu lidar com esse fantasma e seguir em frente. Aqui ela conta sua trajetória.
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"Pela maior parte da minha infância, meu pai era exemplar, não tinha o que falar. Mas, de repente, ele acabou entrando no alcoolismo. Eu tinha uns dez anos, acho, e isso fez com que nossa família desmoronasse.
Ele foi ficando agressivo, chegava bêbado em casa, brigava muito com a minha mãe e eu via, por mais que ela tentasse esconder. Até que, depois de um tempo, começaram os abusos comigo. Ele me procurava à noite, enquanto minha mãe dormia. Começou com os toques e ameaças. Dizia que mataria minha mãe pela noite, que algo ia acontecer e isso me assustava.
E um dia ele começou a me mandar fazer coisas. Naquela época, eu não entendia, não tinha a menor ideia do que era sexo. Apenas obedecia. Eu lembro de me sentir suja, mesmo sem entender direito o que acontecia.
Guardava segredo para proteger minha mãe
Meu pai estava desempregado e era minha mãe quem trabalhava. Vendo como ela sofria, eu não tinha coragem de trazer mais um problema. Como meu pai me ameaçava muito, tinha medo de deixar minha mãe e minha irmã mais nova sozinhas com ele. Na minha cabeça, era minha obrigação protegê-las, então guardava segredo do que sofria.
Em um determinado momento, nos mudamos para São Paulo, a pedido de um tio, que queria ajudar a tentar resolver a situação do meu pai. Mas o resultado foi o contrário: tudo ficou ainda mais difícil e meu pai mais agressivo. Os abusos seguiam, assim como as ameaças e meu pavor.
Até que chegou o ponto em que minha mãe não aguentava mais a violência em casa e o peso de cuidar de tudo sozinha. Então ela entrou em contato com outra parte da família e nós nos mudamos para outra cidade, deixando meu pai para trás.
Achava que a culpa tinha sido minha
Seria o momento de recomeçar. Mas, aos 12 anos, ao invés de refazer minha vida, vi meus traumas começarem a vir à tona. Fiz minhas primeiras amigas, com quem conversava e comecei a entender o que era sexo e o que tinha acontecido comigo. De repente, o jogo mudou, porque passei a ver como se eu tivesse provocado aquilo. Além da dor, veio a culpa.
Ao mesmo tempo, minha mãe começou a namorar e isso me deixou transtornada. Só conseguia pensar: 'se meu pai, que é meu pai, fez aquilo comigo, ele fará pior'. Eu chorava, dizia que minha mãe estava me traindo, mas não conseguia contar tudo. Ela, preocupada, me questionava, tentando entender.
Nessa época, comecei a fazer coisas das quais discordo, não sei se para me agredir. A primeira delas foi fumar.
Comecei a me punir
Um dia, minha mãe me pegou fumando, ficou brava e eu acabei desabando. Contei para ela tudo o que tinha acontecido. Ela ficou desesperada, paralisada. Só me pedia perdão, como se a culpada de tudo fosse ela. Em nenhum momento ela me julgou, mas também não soube lidar. Depois dessa conversa, nunca mais tocamos no assunto.
Seguimos a vida a partir daí, mas eu ainda carregava comigo muito ódio e até sede de vingança. Lembro que queria encontrar meu pai e tirar a vida dele com minhas próprias mãos, para me livrar da dor que sentia.
Para tentar lidar com minha dor, fui tendo vários relacionamentos. Parecia que eu buscava neles o pai que eu não tinha. Ao mesmo tempo, comecei a sair, beber e até cheguei a experimentar drogas. Era uma forma de me punir, pela culpa que eu sentia.
Tentei o suicídio
Sempre tive o sonho de me casar e construir uma família. Mas, nessa fase da minha adolescência, eu devia ter entre 15 e 17 anos, só vivia relações que não seguiam em frente. Achava que a culpa por isso era minha, ao mesmo tempo em que não conseguia acreditar na figura masculina. Tinha medo que todos fizessem o que meu pai fez com minha mãe: ser maravilhoso no começo e, de repente, se transformar em um monstro.
Eu não tinha paz, só um ódio que, no fundo, fazia mal somente a mim mesma. Lembro de virem os pensamentos de repente e eu ficar paralisada, recordando tudo o que tinha vivido. E meu refúgio era beber.
Várias vezes cheguei a decidir que ia mudar, até entrei para a igreja, mas tinha recaídas. Eu me sentia suja, como se tivesse sido amante do meu pai e traído minha mãe. Por isso, cheguei a tentar me matar.
Sentia que Deus tinha me abandonado
Foi com 17 anos que tive uma briga com minha mãe e fui viver na casa da minha avó. Ao mesmo tempo, comecei a trabalhar e passei a me sentir mais independente. Mas ainda não conseguia entender o que acontecia com a minha vida.
Um dia, sozinha, comecei a falar com Deus, em uma crise, sentia que ele tinha me abandonado. Por que minha vida não dava certo? Por que eu não encontrava uma pessoa boa? Eu não aguentava mais tudo que falavam de mim pela cidade.
Chorando, eu pedia ajuda para mudar meu coração e deixar de sentir o que sentia pelo meu pai. Eu precisava superar aquilo. Percebi naquele momento, que eu precisava aprender a perdoar.
Perdoá-lo foi um caminho para me perdoar
Aos poucos, passei a mudar meu olhar. Fui me lembrando do meu pai da infância, como ele era antes de tudo ruim acontecer. Do homem que cuidava de mim doente, que ficava triste quando precisava me corrigir.
Até esse momento, eu só me lembrava do monstro e decidi recordar do pai que ele tinha sido antes. E isso foi me trazendo leveza. Se antes alguém perguntava do meu pai, eu dizia que estava morto. Nesse momento, mudei minha fala: 'Não tenho contato com ele'.
Eu perdoei meu pai. E o perdão foi algo que veio para mim, pois com ele me limpei e consegui me perdoar. Entendi que eu tinha sido uma vítima e pude refazer minha vida.
Hoje sei que essa ferida está completamente curada
Voltei completamente para a igreja, deixei os hábitos que me faziam mal e, alguns anos depois, em 2009, conheci o Alan, o homem com quem vou construir minha família. Nos casamos em 2012 e hoje estamos felizes.
Eu consegui superar os abusos que sofri e hoje falo deles sem dor, sei que ficaram no passado. Para mim, a fé foi essencial, mas costumo dizer que a superação independe da religião. Quando recebo e-mail de pessoas que passam por algo parecido, digo que o principal é se perdoar e entender que foi uma vítima, para se livrar da culpa.
Outra coisa que é muito importante é que é preciso procurar ajuda. Eu não consegui na época, mas teria sido mais fácil. É preciso falar, porque não é uma vergonha sua ter sido vítima. E, por mais que achemos que estamos sós, sempre vai ter alguém para ajudar. Seja na igreja, na família, um psicólogo e até uma delegacia de polícia.
Eu tentava cobrir uma ferida e não deixava cicatrizar. Coberta, ela nunca fecha. Às vezes, dói, mas é preciso. Claro que ficaram marcas, mas eu não me envergonho delas, não tenho vergonha de falar. É uma cicatriz psicológica da qual me orgulho, porque sei que está devidamente curada".
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