Uma vida escondida: "Demorei 37 anos para aceitar minha homossexualidade"
Ivana Maia, 52, só conseguiu aceitar sua orientação sexual quando tinha 37 anos. A encarregada de recursos humanos nasceu em uma cidade do interior de São Paulo, onde a homossexualidade era um assunto velado ou alvo de julgamento e críticas. Sem informações suficientes, passou a vida com medo de viver como realmente gostaria.
"Passei a vida escondida porque ser gay estava associado a ser promíscuo, e eu não sabia o que encontraria se resolvesse me abrir. O receio do não ser aceita ganhava do desejo de liberdade", contou em entrevista ao UOL.
Leia também:
- Opinião: O filho da vizinha já pode ser gay. Mas e o seu?
- O culto evangélico das pastoras lésbicas que acolhem cristãos rejeitados
- 'Se assume, menina!': Coach ajuda lésbicas a saírem do armário
- Homossexuais foram alvo de atrocidades ao longo da história; veja as piores
Dentro de casa, foi o irmão mais velho que a reprimiu. "Um fato que me marcou muito foi ele ter me proibido, quando eu tinha 14 anos, de jogar em um time de meninas porque as chamavam de lésbicas, mesmo quando meus pais permitiram".
Depois de tantos anos com esses desejos e conflitos encubados, Ivana encontrou na terapia e em um grupo de ajuda mútua a coragem para dividir sua história e viver seu primeiro relacionamento verdadeiro. "Tive namoricos com meninos na adolescência, mas apenas para satisfazer a família."
A seguir, ela conta passagens desse processo.
"Era alvo de piadas quando era criança'"
"Sou de uma cidade do interior de São Paulo, que tem pouco mais de 14 mil habitantes e onde 'todo mundo se conhece'. Nunca tive parâmetros ou informação sobre orientação sexual, era um assunto velado. Quando entrava em pauta, era em torno de maledicências. Minhas brincadeiras preferidas na infância eram jogar bola, bolinha de gude e empinar pipa --com críticas da família, claro. Senti na pele a vontade de brincar, mas, por ser 'coisa de moleque', não podia. Quando conseguia, era alvo de piada. Ao mesmo tempo que ficava alegre por brincar, fazia uma autocrítica por gostar daquilo."
"Não conseguia me abrir, apesar do meu desejo"
"Na adolescência, um grupo de mulheres, de classe social melhor, enfrentou a cidade e se assumiu homossexual. Todos sabiam. Eu, entretanto, não conseguia me abrir, apesar do desejo pelo sexo feminino. Para conseguir viver meus anseios, fantasiava os romances e me colocava na posição de homem, afinal, não dava para duas mulheres terem uma relação amorosa. E foi assim a vida toda. Sempre tive medo de falar sobre o assunto. Hoje tenho a impressão que o mundo todo sabia, mas eu achava que não. Uma vez um grupo de meninas que jogava bola nos campeonatos intermunicipais me chamou para fazer parte. Meus pais aprovaram, mas fui proibida pelo meu irmão mais velho porque diziam que elas eram lésbicas. Isso me marcou, foi muito frustrante não poder fazer parte do time."
"Até os 37 anos, vivi em função do que a sociedade espera"
"Fui em busca da minha formação profissional, a única de três irmãos que fez curso superior. Em 1997, consegui um emprego em São Paulo e deixei minha cidade. Mesmo mudando para capital, continuei vivendo escondida. Depois de um tempo, com mais acesso à internet, encontrei reportagens que me ajudaram a entender o que eu era. Encontrei grupos de ajuda mútua, mas ainda assim tinha medo. Ouvia falar da homossexualidade associada à promiscuidade e o receio do que encontraria ganhava do desejo de liberdade. Em 2003, finalmente tomei coragem e liguei para um telefone que aparecia em um dos anúncios desses grupos. No dia marcado para a reunião, passei na frente do local umas três vezes antes de conseguir entrar. Naquele encontro, apenas de mulheres homossexuais. Vi que elas eram como eu, com conflitos parecidos. A maioria teve problema com a família e precisou sair de casa. Depois de ouvir diversas histórias, criei coragem para abrir a minha. Até aquele momento, foram 37 anos sem viver.
"Minha primeira namorada conheceu meu pai. Eles se adoravam"
"Acho que me fechei tanto, que nunca ninguém me abordou. O medo de não ser aceita me impedia. Cheguei a ter namoricos com meninos na adolescência, mas nada que passasse de um contato superficial, era só para satisfazer a família. Depois que tirei esse peso das minhas costas, uma mulher do grupo se aproximou. Nos conhecemos, ficamos muito amigas e acabamos nos relacionando. Moramos juntas por três anos antes de chegar ao fim. Ela conheceu meu pai, nessa época minha mãe já tinha morrido. Eles se adoravam, íamos pescar juntos, meu pai cozinhava para nós. Entretanto, não tivemos uma conversa franca sobre o papel daquela mulher na minha vida. Ele nunca perguntou e eu também não falei. Apenas com a minha irmã tive coragem de conversar abertamente. Do irmão, aquele que me proibiu de jogar no time da cidade, tenho o respeito. Digo que não precisam aceitar, mas respeitar a minha vida. Hoje me dou muito bem com toda a minha família. Tenho quatro sobrinhos, cinco sobrinhos-netos e adoro todos eles. Sempre que é possível, estamos juntos.”
"Não ando com uma etiqueta dizendo que sou lésbica"
"Faço terapia desde a época que comecei a frequentar o grupo de apoio. E acho que nunca vou parar, me faz muito bem. Também sou muito grata àquelas pessoas que me acolheram. Não precisei mais me esconder, nem no trabalho ou qualquer outro lugar. Não ando com uma etiqueta dizendo que sou lésbica, mas se me perguntam, falo sem problemas. Mesmo com todas as informações e lutas, acredito que ainda existam pessoas que passam pelo que eu passei. As pessoas falam muito em liberdade e aceitação, mas na hora que acontece dentro do seu lar é diferente.”
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.