Publicidade velada de youtubers mirins leva crianças ao consumismo
Há quatro meses, Clarissa decidiu o quer ganhar de Natal: uma boneca que mama, faz xixi e pode ter a fralda trocada como um bebê de verdade. Esse não é o primeiro presente que a menina, de três anos, pede aos pais após ver vídeos em que crianças apresentam brinquedos no YouTube.
“Ela sempre me pede produtos da Disney e ovos de chocolate com surpresas. Nem sempre compro. Prefiro dar em datas especiais, mas já cedi por ficar com dó e já comprei um ou outro item, mesmo sem ela estar junto. Algumas coisas não estão à venda onde moramos, então, explico e ela entende”, afirma a mãe de Clarissa, Juliana Martins, 44, diretora de uma escola de idiomas em Goiânia (GO).
Hábil em usar o tablet, Clarissa começou a acessar o site para assistir a desenhos animados e passa até duas horas por dia com o aparelho. “Tudo começou quando eu precisei fazer um MBA em Campinas (SP) e a levava comigo. Essa foi uma maneira de distraí-la nas longas viagens de carro. Mas, entre uma animação e outra, aparecem novidades sobre brinquedos e ela adora ver”, diz.
Produzidos por youtubers mirins (crianças que têm canais próprios no site), os tais vídeos mostram uma prática que ficou conhecida como “unboxing” e consiste em abrir caixas de brinquedos e guloseimas na frente da câmera.
Assédio emocional
Você acha que a internet e a TV estimulam seu filho a pedir presentes?
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Total de 1860 votosPara Ana Olmos, psicoterapeuta de crianças, adolescentes e famílias, mais do que publicidade, esse tipo de material funciona como uma espécie de assédio. “Na vida mental das crianças e adolescentes, os youtubers são como amigos, pessoas próximas nas quais elas confiam. A comunicação que exercem tem um impacto violento sobre a criança, pois é direta e testemunhal, já que o apresentador experimenta o produto”, diz.
A psicóloga explica que, ao assistir ao vídeo, a criança tem a necessidade de ter o objeto mostrado para se sentir igual ao ídolo. “Quem não tem se sente inferiorizado, excluído do grupo. Isso mexe com a autoestima dos jovens e faz com que utilizem um mecanismo psíquico não intencional chamado identificação projetiva sobre os pais. Trata-se de uma forma de chantagem emocional, uma maneira de fazer com que se sintam obrigados a comprar o que querem por culpa, medo ou pena.”
Nesse momento, é comum que a criança venha com o discurso de que todo mundo na escola tem determinada coisa, menos ela. “Nenhum pai quer que o filho se sinta excluído, mas é importante entender que ceder a todos os pedidos é muito pior para a criança, que cresce achando que o outro só serve para gratificá-la.”
De acordo com a psicoterapeuta Ana, quando o filho ganha tudo o que pede, perde a capacidade de sentir desejo e de valorizar suas conquistas, tudo para ele perde a graça logo. “Conquistar algo por merecimento e em uma data que demorou a chegar é muito mais gostoso e faz a criança dar mais valor ao esforço dos pais para adquirirem o que pediu.”
A psicoterapeuta recomenda que os pais não deixem o filho ter acesso livre à internet, nem mesmo quando está assistindo a desenhos. “A criança não consegue distinguir o que é bom ou ruim. Principalmente nas fases iniciais de seu desenvolvimento cognitivo e emocional, por isso, é facilmente manipulada. Os adultos devem limitar o acesso, filtrar o que é visto, lembrando que ela precisa de vínculo com pessoas para se desenvolver, esse é o melhor alimento pedagógico.”
Com o passar do tempo, diz Ana, a criança frequentemente gratificada se torna vulnerável e pode vir a sofrer de ansiedade e depressão no futuro. “Ela se torna um jovem que têm uma fragilidade de ego. Não sabe lidar com a realidade e com a frustração, pois confunde ter objetos com ser alguém e não está acostumada a ouvir não.”
Prática abusiva
Na opinião de Ekaterine Karageorgiadis, advogada do Instituto Alana, ONG que criou o projeto "Criança e Consumo" para debater a publicidade dirigida a crianças e o consumismo infantil, a publicidade velada em vídeos de internet é ilegal e abusiva.
“Chama a nossa atenção a quantidade de grandes empresas que enviam produtos a esses youtubers para que mostrem em seus canais. São roupas, sapatos, brinquedos, doces. Trata-se de uma tática mais barata do que a publicidade convencional e também mais eficaz, pois as crianças confiam umas nas outras.”
Segundo a advogada a lei estabelece na Constituição Federal, no Código de Defesa do Consumidor, e no ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente) que o público infantil é mais vulnerável, não tem capacidade de julgamento nem experiência de vida e, por isso, precisa ser protegido contra esse tipo de assédio.
Em 2014, foi publicada a Resolução 163 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), que estabelece como abusivo o conteúdo que apresentar, com a finalidade mercadológica, desenhos, músicas, personagens ou apresentadores com apelo ao público infantil, promoções e prêmios voltados para crianças, bonecos ou similares. Trata-se, entretanto, de uma recomendação que não tem força de lei.
Por conta da propaganda velada feita pelos youtubers mirins, o Ministério Público Federal entrou com ação civil pública em setembro deste ano contra o Google Brasil, empresa responsável pelo YouTube no país. Na ocasião, o Google informou, por meio de nota, que o site é uma plataforma destinada a adultos e que seu uso por crianças deve ser mediado pelos pais ou responsáveis.
“Temos feito denúncias, proposto debates e buscado mobilizar a sociedade e outros atores sociais no sentido de alertar sobre os perigos desse tipo de vídeo, mas ainda não houve grandes mudanças. É preciso que Estado, família e sociedade se unam para que possamos obter um resultado melhor”, afirma Ekaterine.
Em seu site, o Instituto Alana publicou uma lista dos malefícios que a publicidade dirigida pode causar às crianças, como engordar, causar erotização precoce, distorcer valores, predispor ao consumismo e estressar as famílias.
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