Dois transexuais falam sobre os desafios da paternidade
O cantor e compositor Erick Barbi, 35, casou-se com a psicóloga especialista em identidade de gênero Bárbara Dalcanale Menêses, que conheceu frequentando um grupo de autoajuda para transexuais. Com a união, tornou-se padrasto de dois meninos, um de 11 e outro de sete anos. Quando os dois começaram a namorar, ela tinha acabado de sair de um casamento, estava grávida de três meses e com um filho de três anos. Hoje em dia, os meninos o chamam de “pai do coração”.
Com o tempo, coube a ele explicar aos garotos o que é ser transexual. “Eu e minha mulher introduzimos o assunto com o mais velho, mostrando amigos que eram transexuais. Começamos explicando que tal pessoa tinha nascido menina, mas não se sentia assim”, diz.
Quando a definição ficou clara na cabeça do garoto, o casal lançou a pergunta: “e se o Erick fosse transexual?”. Ao que o menino rapidamente respondeu: “tudo bem”. “Foi só depois de todo esse processo que eu me sentei com ele para conversar e mostrei minhas fotos de criança. Eu disse que era muito triste naquela época, porque não podia ser o que queria. E ele entendeu.”
Quatro anos depois dessa conversa, eles revivem as mesmas experiências com o filho mais novo, que ainda não sabe da identidade de gênero do padrasto, mas entende o que é ser transexual. “Ele está em uma fase muito engraçada e sempre que vê um amigo nosso pergunta se é transexual ou não”, conta.
Em uma dessas vezes, ao receber a confirmação da mãe, o menino não teve dúvidas: colocou a cabeça para fora da janela do carro e gritou: “tchau, transexual!”.
Aos dois anos, Barbi demonstrava interesse por brinquedos e roupas considerados masculinos. Ele passou por vários psicólogos e, aos 16, depois de pesquisar e ler muito sobre o assunto, entendeu que era transexual. Então, iniciou um tratamento hormonal para adquirir as características masculinas que não tinha.
Descoberta
Cauê André, 30, descobriu a explicação para o sentimento de inadequação que sentia assistindo a uma entrevista com João W. Nery, um dos primeiros transexuais brasileiros a fazer uma cirurgia de mudança de sexo, no programa “De Frente com Gabi” (SBT). Era outubro de 2011 e o escritor estava lá para divulgar o livro “Viagem Solitária - Memórias de um Transexual 30 Anos Depois” (Editora Leya).
“Não sabia da existência desse termo transexual, achava que era homossexual, mas, na realidade, sempre me senti um homem. Daí, nesse dia, conforme o João falava, eu ia me identificando. Fui percebendo que eu era exatamente como ele se descrevia”, afirma.
Cauê André se reconheceu transexual aos 27 anos, quando já namorava sua atual mulher, com quem está há sete anos. O primeiro passo foi contar para ela a decisão de mudar o próprio corpo. Tudo para que, ao se olhar no espelho, pudesse enxergar a imagem do homem que era.
“Precisamos conversar muito porque, até então, ela gostava de mulheres. Tinha medo que, depois que eu tomasse os hormônios, ela perdesse o interesse por mim, mas a realidade é que ela nunca deixou de estar ao meu lado”, declara.
André tomou hormônios aos 29 e, dois meses depois, submeteu-se a uma mastectomia (cirurgia para a retirada das mamas). Feliz com o próprio corpo e em um relacionamento estável, começou a cogitar a possibilidade de se tornar pai.
“A gente sempre quis ter filho, mas adotar não era o nosso desejo. Por isso, fomos atrás de clínicas de fertilização”, diz. Mas o preço do procedimento –que retiraria o óvulo de Cauê André para fecundá-lo com o esperma de um doador e, em seguida, implantá-lo na mulher– assustou o casal. “Custava cerca de R$ 16 mil por tentativa, só que é muito difícil conseguir de primeira”, diz.
Foi assim que os dois decidiram fazer o que eles chamam de inseminação artificial caseira, em 2010, com espermas doados por conhecidos que não tinham vontade de ter filhos. “Nós buscávamos na internet as pessoas, conversávamos e arcávamos com o exame de sangue de cada uma, para garantir que o sêmen não estivesse contaminado”, fala.
Uma vez de posse do esperma do doador, o líquido era colocado em uma seringa sem agulha e injetado por ele mesmo na mulher, durante o período de ovulação.
Para dar certo, foram quatro anos de tentativa e muitos doadores. Na quinta inseminação, no final de 2014, o exame de gravidez, enfim, deu positivo. “Na hora, a gente nem conseguia acreditar. Hoje, ela está grávida de seis meses, mas temos roupas compradas há cinco anos”, afirma André.
Desafios diários
Atualmente, o desafio de André é conseguir um emprego para garantir que a filha terá total amparo. Ele ainda não tem uma documentação compatível com o gênero que assumiu e aguarda autorização da Justiça para mudar o nome no RG.
“Procuro emprego diariamente, mas é muito complicado. Eu me inscrevo para uma vaga masculina e chego lá com um documento de identidade feminino”, diz. Por essa mesma razão, a filha, a princípio, será somente registrada com o nome da mãe. Assim que houver a mudança de nome, o pai será incluído na certidão de nascimento. “O mais importante já temos: esse ser que nós vamos amar para o resto da vida.”
No futuro, André pretende falar abertamente com a filha sobre diversidade sexual, assim como Barbi faz com os enteados que, por conta disso, consideram natural uma família não ser apenas aquela formada por um homem e uma mulher.
“Em função da educação que receberam, os meninos já defendem seus valores na escola. Quando alguém diz, por exemplo, que homem não pode beijar homem, eles logo dizem que pode, sim”, afirma Barbi.
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