Topo

A mulher acusada de bruxaria pela própria família que ajuda a salvar outras de tortura e morte

Harriet Orrell

07/12/2021 18h44

Quando o pai de Monica Paulus desmaiou e morreu de um ataque cardíaco, seu irmão a acusou de matá-lo usando bruxaria. Ela foi ameaçada de morte por tortura.

"Toda minha família e todos os meus amigos se afastaram de mim", conta ela. "Fizeram eu me sentir má, sentir vergonha.".

Ela foi forçada a fugir de sua cidade natal e viver no exílio em uma província longe de casa em seu país, Papua Nova Guiné, no sudoeste do Pacífico.

Mas a história de Monica não é única - e poderia ter sido muito pior.

'É bárbaro'

A violência relacionada à acusação de feitiçaria é comum em Papua Nova Guiné. Embora não haja dados confiáveis disponíveis para saber com que frequência isso acontece, os números do governo dizem que houve cerca de 6 mil incidentes nos últimos 20 anos.

As estimativas sugerem que este número é mais alto, com milhares de vítimas - geralmente mulheres e meninas - acusadas todos os anos. É comum que elas sejam vítimas de violência física e sexual. Muitas vezes, as acusações acontecem após mortes súbitas ou doenças inexplicáveis.

"São níveis extremos de violência, alguns dos piores que já vi", diz Stephanie McLennan, gerente sênior de iniciativas para a Ásia da entidade Human Rights Watch, que trabalhou extensivamente na questão das acusações de feitiçaria.

"Há ataques muito violentos e as vítimas são mantidas em cativeiro, são despidas, queimadas com barras de ferro, torturas muitas vezes até a morte. É realmente bárbaro", diz McLennan.

O caso de Mary Kopari ganhou as manchetes internacionais este ano, quando ela foi brutalmente assassinada após a morte de um menino de dois anos.

Ela estava vendendo batatas em um mercado quando uma multidão a capturou e a queimou viva. Ninguém foi preso pelo crime, apesar do incidente ter sido filmado e relatado pela mídia local.

Crucificadas na rua

Quando Monica Paulus enfrentou sua própria acusação de feitiçaria, ela conseguiu escapar.

"No momento em que me acusaram de bruxaria, eu já estava perdida. Eles não precisavam de provas", conta ela.

"Fui banida do funeral do meu pai, não pude participar de jeito nenhum. Sabia que não tinha mais lugar na família, na comunidade ou na tribo", lembra.

Ela acredita que seu irmão a acusou de bruxaria para que ele pudesse ficar sozinho com a herança.

Mas nem todas as acusações têm motivos financeiros - muitas derivam de crenças locais.

"Há mortes desde quando eu era pequena. Isso sempre foi aceito pela comunidade - embora a tortura pela qual elas passavam não fosse tão ruim quanto agora", diz a jovem.

"Antes as mulheres eram mortas silenciosamente, agora elas são levadas às ruas e crucificadas. É realmente desumano."

Pior na pandemia

Nos últimos dois anos, o aumento na violência relacionada à acusações de feitiçaria está correlacionado ao aumento de casos confirmados de covid-19, de acordo com a Human Rights Watch.

"Há uma grande preocupação de que a pandemia exacerbe esta crise - e a violência baseada em gênero é uma crise", diz McLennan.

A correlação ocorre, diz ela, porque há muitas dúvidas quanto à vacina e muito negacionismo da pandemia no país, o que significa que as mortes causadas por covid são muitas vezes atribuídas à bruxaria.

No início deste ano, uma mulher e sua filha foram resgatadas pela polícia depois de terem sido mantidas em cativeiro e torturadas. Elas tinham sido acusadas de praticar bruxaria quando o marido da mulher morreu de covid. Jornais locais relataram que as mulheres, de 45 e 19 anos, sofreram fraturas nos braços e queimaduras causadas por ferro quente.

O governo do país criou agora uma comissão parlamentar para lidar com a violência, que acontece principalmente na região da cadeia montanhosa no interior do país.

"A violência é um câncer que está consumindo Papua Nova Guiné [e] a comunidade. Somos um país cristão, mas matar pessoas por bruxaria não é um comportamento cristão", disse o presidente, Hon Charles Abel.

"Pessoas estão sendo brutalmente mortas e isso não pode ser tolerado. A covid-19 está piorando as coisas, porque as pessoas estão usando isso como uma desculpa para marcar mulheres como bruxas."

Protegendo outras mulheres

Depois de tudo o que passou, Monica Paulus colocou sua própria vida em risco para proteger outras mulheres da caça às bruxas.
"Percebi uma pequena mudança no tempo que venho trabalhando neste problema, mas não vejo mais mudanças acontecendo no futuro próximo - especialmente com o coronavírus", diz ela.
Enquanto vivia no exílio em outra parte de Papua-Nova Guiné, Monica disse que viu uma mulher ser apedrejada até a morte em uma praça pública. Um homem havia tentado estuprá-la e a acusou de ser bruxa quando ela reagiu ao ataque e mordeu a lingua do estuprador.
"Ela foi morta na frente de funcionários do governo que apenas observaram", diz ela.
Monica fundou o Movimento das Mulheres Defensoras dos Direitos Humanos das Terras Altas, e estima que já salvou mais de 500 pessoas nos 15 anos de atuação da entidade sem fins lucrativos.
Os voluntários ajudam de várias maneiras, incluindo alocação e realocação das mulheres, fornecimento de alimentos e aconselhamento jurídico para responsabilizar os criminosos.
"Realocar pessoas e salvar vidas é importante, mas o que realmente precisamos é de Justiça", diz ela.
Desde que criou o movimento, Monica foi perseguida e teve sua casa queimada. Hoje ela vive na Austrália como refugiada.
"É muito difícil estar longe dos meus três filhos", diz ela. "Fico tranquila que eles estão seguros, mas sofro com a saudade."
Uma análise da ONU sobre a Papua Nova Guiné no mês passado concluiu que o país precisa resolver os problemas de direitos humanos, especialmente a violência de gênero.
A Itália foi um dos países que pressionaram o governo da Papua especificamente sobre as acusações de bruxaria.
O governador Allan Bird, vice-presidente do comitê parlamentar sobre violência de gênero, disse à BBC que, pela primeira vez, uma "quantidade significativa" de fundos foi reservada no orçamento do governo para 2022 para combater o problema.
Ele acrescentou: "Isso deve permitir que as agências responsáveis e as ONGs que vêm clamando por ajuda por décadas finalmente possa agir, mas ainda vamos ver se podemos superar desafios de implementação."
Enquanto isso, cabe principalmente aos voluntários proteger as vítimas.
"Monica e outros ativistas por muito tempo preencheram as lacunas que o governo deixa", diz McLennan, da Human Rights Watch "Sem eles, teríamos muito mais mortes em nossas mãos."
Mesmo fora do país, Monica continua lutando.
"Precisamos de uma ação em grande escala, uma mudança cultural", diz ela. "Nós salvamos apenas algumas vidas - há muitas outras que não conseguimos salvar."
A BBC 100 Women faz todos os anos uma lista de 100 mulheres inspiradoras e influentes ao redor do mundo.