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Mulher pede permissão para abortar após tomar anticoncepcional defeituoso no Chile

A pílula se chama Anullete CD; até sete meses atrás, era distribuída a mais de 300 mil pessoas atendidas pelo governo - iStock
A pílula se chama Anullete CD; até sete meses atrás, era distribuída a mais de 300 mil pessoas atendidas pelo governo Imagem: iStock

BBC News Mundo

21/03/2021 12h31

Foi em outubro do ano passado que Javiera*, de 32 anos, descobriu que estava grávida.

A notícia foi surpreendente. Ela tomava anticoncepcionais há três anos.

A jovem descobriu então que não era a única. Ela e outras 170 mulheres no Chile foram vítimas de um escândalo que afetou fortemente o sistema público de saúde do país: a distribuição, por erro, de anticoncepcionais defeituosos a milhares de mulheres.

A pílula se chama Anullete CD, do laboratório Silesia S.A. E, até sete meses atrás, era distribuída a mais de 300 mil pessoas atendidas pelo programa de planejamento familiar do governo.

O Instituto de Saúde Pública do Chile alertou sobre a situação em agosto do ano passado, solicitando a retirada desses anticoncepcionais do mercado, mas a medida chegou tarde demais. A pílula esteve em circulação por mais de um ano e as denúncias sobre gestações indesejadas aumentavam todos os dias.

Apesar de a maioria dessas 170 mulheres terem optado por levar adiante suas gestações, Javiera decidiu requisitar um aborto.

Assim, no dia 17 de dezembro do ano passado, a jovem se dirigiu ao Centro de Saúde da Família (Cesfam) onde era atendida e apresentou seu pedido.

No Chile, a interrupção da gravidez é permitida em três casos: inviabilidade do feto, perigo à vida da mãe, ou estupro. Nos dois primeiros casos, não há limite de semanas de gestação.

Javiera avaliou se encaixar no segundo caso, argumentando que, como resultado da situação pela qual estava passando, estava sofrendo um importante dano psicológico e, por consequência, sua vida estava em perigo.

O Cesfam não respondeu à solicitação e então Javiera decidiu recorrer aos tribunais.

Argumentos do recurso de tutela

Desequilíbrio em sua saúde psíquica, crises de pânico, angústia, falta de apetite, sintomas de desânimo e falta de motivação que a levaram a ter "ideias suicidas" foram parte do quadro de saúde que a mulher relatou à Justiça chilena.

A jovem assegurou ainda que não conta com os recursos econômicos ou a rede de apoio necessária para cuidar de um filho ou filha, pois está dando os primeiros passos na sua profissão técnica.

O recurso de tutela apresentado aos tribunais pela defesa de Javiera, que agora está com 23 semanas de gestação, afirma que o Cesfam onde ela era atendida teve "atuação ilegal e arbitrária" ao se omitir diante da solicitação de aborto. E solicita que seu estado mental seja avaliado a fim de decidir por uma interrupção da gravidez.

Uma decisão 'significativa' para os direitos das mulheres no Chile

Nesta quarta-feira (17), o Tribunal de Justiça de São Miguel, em Santiago, acatou o pedido da jovem, abrindo um importante precedente para os direitos reprodutivos das mulheres no Chile.

Em uma decisão unânime, a corte afirmou que, no caso de Javiera, houve violação ao direito à vida, integridade física e psíquica da mulher, além de uma violação ao seu direito à igualdade perante à lei.

Além disso, a sentença concluiu que, ao não responder à solicitação inicial da mulher, o Cesfam atuou, de fato, não somente de forma "caprichosa" e "arbitrária", como também "ilegal".

O Tribunal de Justiça ordenou que, dentro de um prazo de cinco dias, o Centro de Saúde da Família avalie a jovem, para determinar se é possível ou não aceitar a causa da interrupção da gravidez.

De acordo com a decisão, o Estado do Chile tem uma "obrigação proativa de cuidar da vida e da integridade física e mental das pessoas" e "abandonou essa obrigação ao distribuir anticoncepcionais defeituosos".

Os juízes também afirmaram que "a falta de meios físicos, espirituais, econômicos e sociais" em uma gravidez indesejada representa um risco à vida por si só, que muitas vezes "perpetua a precariedade das mulheres".

"Essa decisão é muito significativa na possibilidade de se avançar, tanto em termos judiciais, como sociais, nos direitos reprodutivos das mulheres no Chile", disse à BBC Mundo a advogada Laura Dragnic, do projeto Corporación Miles, que representou Javiera no requerimento.

A advogada, além disso, afirma que a sentença marca um precedente a respeito da legislação sobre aborto no país.

"A decisão fala da interrupção voluntária da gravidez como um direito legal. E isso é importante porque em geral a interpretação da legislação sobre aborto no Chile é para circunstâncias de extrema necessidade", destaca.

"Até agora, ele não é compreendido propriamente como um direito. E isso é muito significativo, sobretudo considerando as discussões que se aproximam quanto ao aborto legal dentro do processo constituinte", afirma.

Para Javiera, no entanto, ainda há um caminho a percorrer. O Cesfam deve se pronunciar sobre seu estado de saúde e, depois, será decidido se ela pode ou não interromper a gravidez.

De todo modo, a demora no processo a prejudicou. Com 23 semanas de gestação, um aborto não é mais recomendado.

Quanto a isso, a advogada Laura Dragnic afirma que a decisão será tomada quando houver uma resolução final por parte do Cesfam.

*A entidade que representa a jovem solicitou que seja mantida a confidencialidade quanto ao verdadeiro nome de Javiera, com objetivo de resguardar sua privacidade.