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"Deixei meu marido após 55 anos de abuso"

Sarah* começou a sofrer abusos físicos e psicológicos depois de dois anos de casamento - iStock/Reprodução
Sarah* começou a sofrer abusos físicos e psicológicos depois de dois anos de casamento Imagem: iStock/Reprodução

Caroline Gall - Da BBC News em West Midlands (Reino Unido)

12/01/2021 09h57

Aos 73 anos, Sarah finalmente conseguiu deixar o marido, depois de 55 anos de casamento abusivo - uma vida inteira vivida com medo.

Ao longo de toda sua vida, Sarah* não tinha permissão para pintar as unhas, usar perfumes ou ir deitar até seu marido, Barry*, voltar para casa do bar. O comportamento dele era tão controlador que ele desenhava linhas em volta de objetos na casa para checar se ela tinha movido alguma coisa enquanto ela fora.

Os abusos físicos e psicológicos começaram depois de dois anos de casamento. Sem nunca acreditar que ela tivesse uma uma saída, Sarah aguentou abusos quase diários por mais de cinco décadas. Ela só conseguiu deixar o marido abusivo aos 73 anos, depois de 55 anos de casamento.

Quando finalmente conseguiu se libertar, após ser acusada de mover um objeto na casa que ele a havia proibido de mexer, Sarah fugiu para a casa da filha, a 160km da sua, no interior da Inglaterra.

Agora ela diz que está pronta para reconstruir sua vida, livre do medo.

"Se eu tiver mais cinco anos de vida, vou fazer o que quero e ser feliz", diz ela. "Eu nunca pensei que teria para onde ir, que poderia ir embora. Mas você pode! Eu digo para qualquer pessoa na mesma situação: 'você pode sair e não fazer o que eu fiz e ficar tanto tempo'."

O relatório de crimes da Inglaterra e do Reino Unido aponta que cerca 180 mil mulheres entre 60 e 74 foram vítimas de violência doméstica entre 2019 e 2020, e cerca de 98 mil homens da mesma idade sofreram violência doméstica no mesmo período.

No Brasil, os casos de feminicídio cresceram 22% em 12 Estados durante os primeiros meses da pandemia, segundo o relatório Violência Doméstica durante a Pandemia de Covid-19, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

De acordo com Raj Thind, chefe regional do serviço de violência doméstica no condado de Black, encontrar a força para ir embora sabendo que você tem que começar de novo em uma idade mais avançadas é muito assustador.

"Pode haver uma imprevisibilidade que vem com a saída", diz Thind, que ajudou Sarah em sua busca por libertação.

"Você tem algum controle ao ficar, você sabe qual é o abuso que sofre em casa. Mas ir embora pode fazer com que o abusador persiga a vítima, e ela nunca sabe a que ponto ele vai chegar."

"Além disso, depois de tantos anos, o abuso pode se tornar normalizado... Há um medo paralisante que mantém a vítima presa ao abusador."

Em geral, Sarah não tinha permissão para sair da casa que dividia com o marido ou, se podia fazê-lo, tinha que voltar em um horário específico. Sua família tinha que marcar horário com o marido dela se quisesse vê-la.

Se Barry fazia algo no jardim, conta Sarah, ela precisava sentar-se na sala de jantar para que ele pudesse vê-la pela janela. Ele a criticava constantemente, tinha casos com outras mulheres e não se dava ao trabalho de esconder. Nunca deu um presente de Natal ou aniversário para ela.

Mas um dia, no ano passado, Sarah decidiu que não aguentava mais. Com o passar dos anos, ela conseguiu juntar algum dinheiro de sua aposentadoria - que em geral ia para financiar o estilo de vida do marido.

A fuga

"Naquele dia eu finalmente tive coragem", conta.

Barry tinha saído depois de brigar com Sarah. Ela disse ao filho, que morava com eles, que iria fugir. Fez as malas e foi com ele até a casa de um vizinho, que chamou um táxi para levá-la a um hotel próximo.

"Eu estava paranóica. Liguei pra polícia chorando, meu filho também estava chorando, ambos olhando para a janela e esperando", conta. "A polícia não chegou imediatamente e estávamos com muito medo. Acabamos indo até a rodoviária, onde pegamos um ônibus e depois um trem para a cidade onde minha filha mora."

Ao chegar, Sarah, que não tinha celular, ligou para sua filha Emma de uma cabine telefônica e disse que havia saído de casa, mas achou que estava sendo seguida e desligou.

Em pânico, Emma informou a polícia na cidade natal de sua mãe que ela havia desaparecido. Barry disse à polícia que não tinha feito nada de errado e sugeriu que sua esposa estava sofrendo de uma doença mental.

Demorou uma semana para Emma encontrar Sarah, que estava se mudando de pousada em pousada com o filho.

"Minha mãe estava irreconhecível quando fui buscá-la", disse Emma."Ela mal conseguia falar. Ela estava tremendo. Foi terrível."

'Salvaram a minha vida'

Sarah diz que viu Barry pela última vez depois de ser avaliada por equipes de saúde mental nos dias seguintes ao reencontro com sua filha. Eles não encontraram nada de errado com ela.

"Ele disse que sentia muito e que mudaria, como sempre dizia, mas nunca mudou", diz Sarah.

Desde então, ele fez ameaças à filha, mas parou desde que Sarah conseguiu uma ordem judicial impedindo-o de se aproximar.

"A ajuda que recebi desde então foi excelente", diz Sarah. "Eles salvaram minha vida. Não pensei que houvesse ajuda, mas existe."

Raj Thind, do serviço de violência doméstica, diz que há várias maneiras de as vítimas de violência doméstica receberem ajuda, mesmo que não estejam preparadas para deixar um relacionamento abusivo.

"Muitas vezes, pode ser apenas conversar com alguém", diz ela. "Temos mulheres que disseram que o simples fato de conversar comigo ajuda"

Segundo Thind, sair de um relacionamento abusivo é um processo. "Elas dizem que podem tentar, mas ainda não, no futuro. E você faz a jornada com elas", diz.

"É importante que eles saibam que existe ajuda."

*Todos os nomes citados na reportagem foram alterados

No Brasil, quem sofre violência doméstica pode procurar ajuda ligando para o número 180, na Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência. O serviço oferece atendimento para registro de denúncias, orientações para vítimas de violência e informações sobre leis. Funciona 24h e garante o anonimato da vítima. Vítimas também podem procurar ajuda em uma delegacia da mulher ou na defensoria pública do seu Estado.