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"Me tornei um homem feminista após o nascimento da minha filha"

Hung escreve sobre questões relacionadas às mulheres no blog "Feminist Asian Dad" - EUGENE HUNG
Hung escreve sobre questões relacionadas às mulheres no blog 'Feminist Asian Dad' Imagem: EUGENE HUNG

Pablo Uchoa

BBC World Service

05/01/2021 18h39

O professor de matemática Eugene Hung conta que a inquietação em torno da ideia do que é o mundo para as mulheres surgiu quando a filha mais velha nasceu, 14 anos atrás.

Ele começou a relembrar como era a rotina para as colegas mulheres na faculdade, que não se sentiam seguras em voltar sozinhas da biblioteca à noite para casa.

"Elas tinham que lidar com isso (a sensação de insegurança), e eu, não. Percebi que era extremamente privilegiado e que nunca havia me dado conta disso", disse ele à BBC.

"Como homem, nunca tinha dado muito valor a isso."

'Pai feminista'

Essa nova consciência acabou tornando-o um ativista pelos direitos das mulheres. Na tentativa de contribuir para o empoderamento feminino, ele criou o blog Feminist Asian Dad ("Pai Asiático Feminista", em tradução livre).

Os posts versam sobre uma ampla gama de assuntos, que vão de filmes infantis como Mulan - uma produção da Disney com personagem feminino forte como protagonista - à eleição da democrata Kamala Harris como a primeira vice-presidente americana com ascendência asiática (o avô materno de Harris nasceu na Índia).

Há ainda artigos sobre assédio sexual no ambiente de trabalho e violência sexual. Para o "pai feminista", os homens precisam fazer parte desses e de outros debates.

"Os homens precisam se dar conta de que, pelo menos nos EUA, em cerca de 90% dos casos, a violência contra a mulher parte do homem", afirma Hung, que mora no Estado americano da Califórnia.

"Muitas vezes isso é visto exclusivamente como um assunto feminino, mas, se vem dos homens, de onde vem o problema? Bom, vem de nós. E por que não estamos falando mais sobre isso?"

Intenção versus ação

Ele reconhece que houve uma mudança nas atitudes masculinas no decorrer das últimas gerações, mas destaca que a desigualdade de gênero segue sendo parte do cotidiano.

Segundo as Nações Unidas, as mulheres recebem em média 23% menos do que os homens quando ocupam os mesmo cargos.

E gastam cerca de duas vezes mais tempo que os homens em trabalhos não remunerados, como o doméstico.

Em mais de 100 países, as mulheres são proibidas por lei de desempenhar determinadas funções.

"Se fossem questões que envolvessem apenas as mulheres, elas teriam sido resolvidas muito tempo atrás", opina Hung.

A solução, em sua visão, passa por uma cooperação masculina, e "os homens não estão de fato envolvidos nos esforços para sanar esses problemas".

"Até que nós (homens) comecemos a discutir entre nossas famílias, amigos, vizinhos, comunidades e na sociedade como um todo, não vamos ter mudanças significativas."

Por que então os homens não o fazem?

O fator medo

"Os homens se acostumam desde cedo com essa ideia de ter de estar o mais distante possível de características vistas como típicas do comportamento feminino", afirma Ludo Gabriele, autor de um blog sobre masculinidade e paternidade.

"Como resultado, quando chegamos a posições de poder no ambiente de trabalho, a visão é que você é uma espécie de traidor se apoiar uma mulher", disse à BBC.

Gabriele faz parte de uma iniciativa chamada MARC (Men Advocating Real Change, ou, em tradução livre, "homens em prol de mudanças reais"), que busca levantar a discussão entre homens e mulheres sobre o sexismo no ambiente de trabalho.

O grupo surgiu após mais de uma década de estudos da organização não governamental Catalyst, que busca alçar mais mulheres a posições de poder no mercado de trabalho.

Em um levantamento realizado em 2020 com 1.500 homens no Canadá, a organização identificou que, enquanto 86% dos participantes diziam querer intervir ao identificarem comportamentos sexistas no ambiente de trabalho, apenas 31% diziam se sentir confiantes para fazê-lo.

"Nossa pesquisa identificou três barreiras: ignorância, apatia e medo", destaca Alixandra Pollack, vice-presidente da MARC.

O medo, segundo ela, está voltado especialmente ao julgamento por parte de colegas homens, medo de ser visto de forma diferente, de perder o status no ambiente de trabalho.

"O componente medo é o medo de não pertencimento nos grupos de colegas, de homens, especialmente se a cultura dominante na organização é mais combativa."

"Mas existe também o medo de não saber por onde começar, porque há muitos homens com boas intenções que têm medo de errar e serem deixados de lado."

Momento de clareza

Para fazer frente a esses obstáculos, a iniciativa busca fazer parcerias com empresas - entre elas a petroleira Chevron e a multinacional P&G, de produtos de limpeza e higiene - dispostas a inscrever funcionários em cursos de aperfeiçoamento que vão de sessões curtas a programas que duram até um ano.

As aulas podem causar um desconforto inicial naqueles que se consideram "ignorantes" nos temas, como descreveu um dos participantes que foi chamado atenção após usar linguagem racista.

"Mas, passado esse momento de vergonha, é uma grande experiência de aprendizado", definiu.

Uma mulher descreveu como um "momento forte" um episódio em que as mulheres participantes foram convidadas a cruzar a sala caso já tivessem vivido algum tipo de assédio ou tivessem sido algo de um comportamento inapropriado por parte de colegas homens.

"Em ambas as vezes, todas as mulheres atravessaram a sala. Aquele foi um momento muito forte, duvido que algum dos homens que participou do programa vá esquecer."

Elefante na sala

Homens como Hung e Gabriele querem que outros homens "reconheçam que são parte do problema e que devem ser parte da solução", conforme escreveu este último em um dos seus posts, intitulado "Saindo do armário como um homem feminista - e por que você deveria fazer o mesmo".

Gabriele começou a escrever no Woke Daddy ("pai consciente", em tradução livre) dois meses depois do nascimento de sua filha Sofia, em 2017. Três anos antes, ele havia se demitido do cargo de direção que ocupava - uma posição cobiçada e, para quem via de fora, um degrau lógico na carreira corporativa que ele trilhava.

Mas, aos 31 anos, com mulher, uma casa e um filho para os quais tinha pouco tempo, ele se sentia "horrível", com uma grande sensação de vazio.

Só posteriormente percebeu que sua infelicidade estava diretamente ligada ao fato de ter vivido no que chama de "caixa do homem": uma definição estreita de masculinidade que inclui evitar ter contato com seus próprios sentimentos, valorizar carreira e status mais que autenticidade e ter sempre um pé atrás em relação ao sexo oposto.

São muitos os homens insatisfeitos hoje com essas mesmas questões.

Em uma pesquisa recente feita pela Dove e pela Promundo, organização não-governamental que divulga a chamada masculinidade saudável, 85% dos participantes - pais em sete países (Brasil, Argentina, Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Holanda e Japão) - afirmaram que fariam qualquer coisa para que estivessem mais envolvidos na criação dos filhos.

A grande maioria, entretanto, não havia tirado licença após o nascimento ou adoção dos filhos.

Entre as causas citadas por eles estavam a atitude de gestores e colegas, que os fizeram sentir desconfortáveis para pedirem para se ausentar de suas funções por algum tempo.

Dê oportunidade de escolha às famílias

O jornalista americano Josh Levs, autor de All In: How Our Work-First Culture Fails Dads, Families, and Businesses- And How We Can Fix It Together ("All In: Como Nossa Cultura que Prioriza o Trabalho Falha com Pais, Famílias e Negócios - e Como Podemos Consertar Isso Juntos", em tradução livre), ressalta que muitos chefes ainda acreditam no falso estereótipo de que homens que requisitam licença paternidade ou pedem horários de trabalho flexíveis vão "ficar em casa no sofá assistindo a programas de esportes na TV".

"Temos um sistema que pressiona as mulheres a ficar em casa e os homens a permanecerem no trabalho."

Para mudar esse quadro, ele avalia, a sociedade precisa repensar leis e práticas do mercado de trabalho, como aquelas que afetam a licença paternidade e a igualdade de oportunidades para ambos os sexos, assim como as percepções e estigmas ligados aos papéis tradicionais de gênero.

"Até que tenhamos feito isso, não estaremos dando oportunidades iguais nos ambientes de trabalho."

Ele acrescenta que esse arranjo não é ruim apenas para as pessoas, mas também para os negócios.

"As empresas performam melhor quando têm as pessoas certas nas funções certas. As mulheres são 50% da população - então, a probabilidade é que, em 50% das vezes, uma mulher vai ser a pessoa certa para o cargo."

Levs diz ainda que países que empoderam as mulheres estão no caminho para proporcionar igualdade de oportunidades e combater a desigualdade de gênero.

"Quando deixamos que as famílias decidam quem vai ficar em casa e quem vai trabalhar, os negócios fluem melhor, a economia flui melhor, há melhores oportunidades de emprego e famílias melhores."