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Decisão de juiz sobre caso de estupro leva chilenas de volta às ruas em protesto

Em meados de setembro, Antonia Barra, 21, foi estuprada. Três semanas depois, cometeu suicídio - Instagram
Em meados de setembro, Antonia Barra, 21, foi estuprada. Três semanas depois, cometeu suicídio Imagem: Instagram

Lucía Blasco

BBC News Mundo

24/07/2020 18h31

Antonia Barra não chegou a conhecer o coletivo feminista chileno Las Tesis, que ganhou fama mundial no fim do ano passado com a performance 'Um Estuprador no Seu Caminho'. Na quarta-feira, no entanto, as vozes femininas do grupo se uniram em homenagem a ela.

Nem a pandemia, nem o distanciamento social impediram que milhares de mulheres saíssem às ruas de várias cidades do Chile para cantar o hino feminista "O estuprador é você", bater panelas e bloquear avenidas com um único pedido: justiça para Antonia.

O caso de Antonia é assunto na imprensa chilena há meses. Mas, nesta quarta-feira, a indignação chegou a um outro patamar depois que um juiz determinou a detenção domiciliar do acusado, Martín Pradenas, e não sua prisão preventiva. Ele nega ter estuprado a jovem.

Durante a audiência, o canal digital do Poder Judiciário chileno atingiu um número recorde: um milhão de conexões.

A jovem de 21 anos contou que foi estuprada em meados de setembro passado. Quase um mês depois, cometeu suicídio.

Foram dois os principais argumentos para a rejeição da prisão preventiva de Pradenas, de 28 anos: o "bom comportamento do acusado", que é investigado por cinco casos de abuso sexual e estupro de outras jovens mulheres, e a "falta evidências suficientes" para comprovar o crime.

"Esta é uma instância de um processo judicial, não sua sentença final. O argumento do juiz é escandaloso e não leva em conta a seriedade do caso", diz a jornalista Paula Molina à BBC News Mundo, o serviço em espanhol da BBC, em Santiago do Chile.

Além desta decisão, o juiz responsável pelo caso, Federico Gutiérrez, definiu que duas das cinco acusações — ocorridas entre 2010 (contra uma jovem de 16 anos) e 2014 (uma mulher de 19 anos) — estão prescritas.

No Chile, esse tipo de crime prescreve após cinco anos.

"Isso é algo chocante, porque sabemos que as vítimas demoram muitos anos para denunciar. A prescrição torna todo o processo inútil. Fica difícil entender porque parece haver um padrão de crimes semelhantes, como mostram as denúncias neste caso ", explica Molina.

'Não quis preocupar os pais'

Durante a audiência, transmitida ao vivo, foi exibido um vídeo de Antonia e Martín, publicado posteriormente na televisão nacional, no qual ele a empurra diversas vezes enquanto caminham.

"Ao ver o vídeo em que o acusado aparece ao lado da vítima, que mais tarde será estuprada e que tirará a própria vida, o juiz diz: 'Só vejo um casal andando'. É um sinal muito forte de como a justiça chilena não vê ou escolhe não ver o que acontece nesses crimes ", afirma Molina.

O Judiciário transmitiu a audiência ao vivo. À esquerda, o juiz Federico Gutiérrez - Poder Judiciario do Chile - Poder Judiciario do Chile
O Judiciário transmitiu a audiência ao vivo. À esquerda, o juiz Federico Gutiérrez
Imagem: Poder Judiciario do Chile

Pradenas disse em um vídeo publicado em 17 de julho no YouTube que as cenas mostram "como eu e Antonia nos beijamos, abraçamos e depois saímos como pessoas normais".

Meses antes, ele confirmou que os dois fizeram sexo, mas disse que as relações eram consensuais.

O pai de Antonia, Alejandro Barra, não perde a esperança.

À BBC News Mundo, ele afirmou: "Ela não quis preocupar os pais. Ela não queria que eu soubesse, batesse na porta do acusado e desse os chutes nele que ele merece. Foram semanas, e minha filha nunca disse o que estava acontecendo (...) Nós não tivemos chance de agir".

"Hoje eu penso: quantas meninas são iguais à minha filha e, por vergonha da exposição a que podem ser alvos, não denunciam. Uma menina deve ser aplaudida porque se atreve a denunciar um criminoso. É isso que o que eu quero. À minha filha faltou que eu e toda a sociedade falássemos: tudo tem solução. Eu digo às meninas: se algo assim acontecer, digam. Não pensem que apontarão o dedo para vocês. Tudo pode ser resolvido. Tudo, exceto a morte."

O julgamento começou na terça-feira, 21 de julho. O tribunal estabeleceu 120 dias para a investigação dos fatos.

O que se sabe sobre o caso de Antonia Barra?

Na manhã de 18 de setembro de 2019, Antonia Barra acordou em um alojamento turístico em Pucón, no sul do Chile. Pradenas estava deitado sobre ela. Depois de gritar para ele sair, vestiu-se e saiu.

Ela viajou para a cidade com uma amiga, Consuelo, e o namorado dela, com quem Antonia foi a uma boate. Lá haveria começado o assédio de Pradenas, registrado nas câmeras de segurança.

As mensagens de texto e áudio que a jovem enviou a vários amigos pelo WhatsApp, depois publicadas pelo Ministério Público, ajudam a contar sua história.

Antonia Barra - Reprodução/Instagram - Reprodução/Instagram
Antonia ficou em silêncio por quase um mês por medo da reação de seus pais, de acordo com seu próprio relato
Imagem: Reprodução/Instagram

Nelas, ela diz que foi estuprada por Pradenas e que não queria denunciá-lo por medo da reação de seus pais.

Antonia ficou em silêncio até 12 de outubro de 2019. Naquele dia, ligou para seu ex-namorado, Rodrigo Canario, e contou sobre a agressão sexual que ele havia sofrido. Ele a insultou, gravou a chamada e a encaminhou a outras pessoas.

Um dia depois, ela mandou a ele uma mensagem de despedida. Depois, se matou.

Cansaço

O caso de Antonia aconteceu em meio a protestos iniciados em 18 de outubro do ano passado e teve um impacto especial.

"Há um cansaço com o que é percebido como abusos em geral na sociedade chilena", diz Molina.

"Nesta reação imediata e intensa ao que aconteceu na audiência do julgamento [de Pradenas], esse sentimento tocou muitas pessoas. De certa forma, é como o mesmo impulso de 18 de outubro e as últimas manifestações que temos vivido. Muita gente que não está disposta a ficar calada quando se considera que algo é injusto. "

A jornalista chilena considera que o caso de Antonia Barra expressa que "existe a percepção de que o assédio sexual contra a mulheres é uma questão muito difundida no Chile".

Mulheres em Santiago do Chile fazem a coreografia de 'um estuprador em seu caminho' - JAVIER TORRES/Getty Images - JAVIER TORRES/Getty Images
Mulheres em Santiago do Chile fazem a coreografia de 'um estuprador em seu caminho'
Imagem: JAVIER TORRES/Getty Images

"Apenas um dia antes da audiência judicial, foi publicada uma espécie de raio-x do assédio no Chile, onde se dizia que mais de 90% das mulheres vivem situações de diferentes tipos de assédio no país. Isso cria uma identificação por parte de muitas mulheres com as vítimas ", acrescenta Molina, que se refere a uma pesquisa nacional na qual mais de 1.200 mulheres participaram.

Mas o contexto da força atual do movimento feminista no Chile também influencia.

"A última grande manifestação antes da pandemia foi a de 8 de março, e não havia apenas ativistas ou militantes, mas mulheres que, pensando diferentemente em muitas questões, concordaram que é hora de as mulheres reivindicarem igualdade total. Direitos. Isso também mobilizou a conscientização em muitas mulheres ", afirma a colaboradora da BBC News Mundo.

"Em outros países também existe um sentimento generalizado de que, nos processos judiciais, todo o ônus da prova recai sobre as mulheres, e que o próprio processo do tribunal revitimiza e questiona as mulheres de uma maneira que não condiz com a agressão que elas denunciam ".