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'Fui abusada e obrigada a assistir abuso de crianças na escola por diretor e padre'

Biani López Antúnez conta que foi abusada quando tinha entre 8 e 10 anos e diz que até hoje está "quebrada" por dentro - Ana Gabriela Rojas
Biani López Antúnez conta que foi abusada quando tinha entre 8 e 10 anos e diz que até hoje está 'quebrada' por dentro Imagem: Ana Gabriela Rojas

Ana Gabriela Rojas

Da BBC Mundo no México

07/02/2020 09h46

O grupo católico Legionários de Cristo se tornou notícia, em dezembro passado, quando admitiu que 175 crianças foram abusadas por membros de sua congregação entre 1941 e 2019.

O relatório divulgado pelo grupo religioso incluía a admissão de que seu fundador, o mexicano Marcial Maciel, abusou de 65 menores.

Como fazem a cada seis anos, os Legionários de Cristo — grupo presente em 21 países, entre eles o Brasil — estão reunidos em Roma durante oito semanas, para, além de nomear novos líderes, tratar do "caminho para avançar no atendimento a vítimas de abusos sexuais, possíveis encobrimentos, negligências ou omissões em relação a estes no passado", explicou à BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC) Pablo Pérez de la Vega, diretor de comunicação da entidade.

Existe também, desde 2010, um comunicado do Vaticano emitido após uma visita aos legionários que descreve o comportamento de Maciel como "autênticos delitos" e "carente de escrúpulos".

"Essa vida (de Maciel) era desconhecida de grande parte dos legionários, sobretudo (por causa do) sistema de relações construído por Maciel, que habilmente conseguiu ganhar a confiança, a familiaridade e o silêncio de quem o rodeava", diz o comunicado.

Outro sacerdote acusado é Fernando Martínez, que admitiu abusos após ser alvo de acusações por várias vítimas no México.

Uma dessas vítimas é a museóloga Biani López Antúnez, de 37 anos, que conta ter sido abusada entre os 8 e 10 anos de idade.

Naquela época, Biani escreveu uma carta a uma professora contando que Martínez — então padre e diretor da escola onde ela estudava — dava nela e em suas colegas "beijos cada vez mais próximos à boca" e "segurava-as entre as pernas".

Assim como Biani, outras vítimas de Martínez criticaram o relatório dos Legionários de Cristo, afirmando que ele não é abrangente o bastante para incluir as pessoas que, segundo as vítimas, ajudaram a encobrir os abusos.

Abaixo, Biani conta à BBC News Mundo como era a rotina de abusos:

Biani López Antúnez, em foto na escola dos Legionários de Cristo, no México; ela conta que integrantes da congregação encobriam os abusos - Arquivo pessoal de Biani López Antúnez - Arquivo pessoal de Biani López Antúnez
Biani López Antúnez, em foto na escola dos Legionários de Cristo, no México; ela conta que integrantes da congregação encobriam os abusos
Imagem: Arquivo pessoal de Biani López Antúnez

"Quando eu tinha 8 anos, minha família se mudou da Cidade do México para Cancún, em 1991. A cidade (costeira) era muito pequena na época, e meus pais decidiram que nos mudássemos para lá para ficarmos em um ambiente mais são e próximo à natureza.

Eles me matricularam em uma escola dos Legionários de Cristo, sem imaginar os terríveis abusos que eu sofreria nas mãos do padre e diretor Fernando Martínez.

A escola estava em construção quando as aulas começaram. Eu tinha oito anos e entrei na terceira série.

Hoje sabemos que Martínez havia sido nomeado (diretor) apesar de (na época) já ter sido acusado de abusos sexuais em outros colégios da Cidade do México e de Saltillo.

Ele próprio havia admitido uma acusação de 1991 e até pediu para não ser transferido a Cancún porque não se sentia "firme" para aceitar a responsabilidade (de dirigir uma escola) depois dessa acusação.

Mesmo assim, os legionários colocaram meu colégio nas mãos de um predador sexual, que continuou com seu comportamento criminoso.

Martínez foi ganhando a nossa confiança e aumentando seus abusos gradualmente.

Começou com beijos na bochecha que dava cada vez mais perto da nossa boca, como se fosse sem querer.

E foi subindo de tom, com abusos mais graves, até que chegou a nos estuprar. E fez isso várias vezes.

Tinha um conluio com uma professora, que tirava um grupo de três meninas das salas e nos levava à direção ou à capela. Ali, fechavam as cortinas, as portas, e (ele) nos fazia todo o tipo de coisas horríveis.

Às vezes nos fazia ler a Bíblia, nos dava hóstias ou brincava com os símbolos sagrados, para nos distrair, nos confundir e poder nos abusar.

Nós saíamos chorando, e ninguém dizia nada.

Ele me abusou durante dois anos, dos 8 aos 10. Além disso, ele me fazia ver como abusava das outras meninas.

Foi terrível. Eu era muito pequena e não entendia o que estava acontecendo. Ele era uma figura de autoridade total. Era o padre da escola, que supostamente representava Deus.

Além disso, ele era a figura máxima de autoridade dentro da escola. Como aquele senhor poderia fazer algo ruim?

Eu chorava muito. Todas nós chorávamos. Lembro que me trancava no banheiro da escola e chorava e chorava. Voltava às aulas, encostava na carteira e continuava chorando.

Pouco a pouco, tomei consciência de que estava sendo abusada. Não aguentava minhas emoções e meu corpo.

Tenho lembranças muito vívidas de certos abusos. Lembro muito bem a vez em que ele me fez testemunhar o estupro de uma menina mais nova que eu, na capela da escola. Ali percebi que aquela menininha estava sofrendo e que eu tinha que fazer algo para protegê-la.

Em uma ocasião, uma professora da escola entrou no banheiro e viu o nosso grupo de meninas chorando. Ela nos perguntou o que tinha acontecido, e dissemos que não podíamos falar.

Ela nos pediu que escrevêssemos uma carta.

Eu a escrevi, mas a dirigi à minha professora, Lorena.

Além dos beijos, consegui articular que ele nos segurava entre as pernas. Na nossa mente infantil, ela difícil discernir que a professora Aurora era cúmplice dele e que nos levava a ele com conhecimento de o que ele nos fazia.

Dessa forma, contamos a ela (Lorena) o que estava acontecendo. Ela nos disse que ia solucionar, mas pediu que não contássemos a nossos pais. Mas foi justamente isso que fizemos.

Disse à minha mãe, e ela contou às outras mães das meninas que eu sabia que estavam sendo abusadas.

Elas falaram com Eloy Bedia Diez, que era o novo diretor territorial dos Legionários, em junho de 1993.

Hoje sabemos que, já em dezembro de 1992, Ana Lucía Salazar (hoje apresentadora de rádio e TV no México), que era um ano mais nova que eu, havia contado a seus pais que Martínez a abusava repetidamente. Ele a estuprava sozinha.

Quando eles falaram com Martínez, ele respondeu que ela "havia mal interpretado tudo".

Eles também falaram com Bedia e com o bispo (de Cancún-Chetumal) Jorge Bernal, que não fizeram nada. Certamente pensaram que a denúncia de uma única menina não lhes causaria problemas.

Os pais dela a tiraram da escola e se mudaram para a cidade de Monterrey.

Quando nós quatro também o acusamos, Bedia informou aos pais dos alunos que Martínez já não estava mais em Cancún. Sabemos que tiraram ele do país e o levaram a Salamanca, na Espanha, onde o colocaram em um seminário, também em contato com menores.

Bedia escreveu recentemente que, depois de se reunir com nossas mães, esteve com todos os pais das crianças da escola.

O que ele não diz é que, para essa segunda reunião, não convidou as mães das vítimas. E para os demais contou uma história diferente: disse que Martínez teve de sair do México por causa de um problema no coração e que ele seria operado em Miami.

Com Martínez fora do país, meus pais sequer puderam denunciá-lo legalmente.

'Vergonha'

Ao redor do tema se criou um grande escândalo. Alguns sabiam que Martínez tinha saído por causa de abusos sexuais. As pessoas se perguntavam quem seriam as meninas abusadas.

Embora não fossem ataques diretos a mim, eu escutava. Não sabiam, mas estavam falando de mim. Eu sentia muita vergonha.

É o que a sociedade faz: aponta para as vítimas, e não para quem as vitimou.

Alguns até defendiam o padre, dizendo que as acusações eram calúnia. 'Como podem dizer isso de um padre tão simpático e boa gente, que deu a primeira comunhão a nossos filhos?'.

Não sabemos quantas vítimas houve no nosso colégio. Mas tenho certeza que o relatório (dos próprios legionários) não abrange tudo.

Só reconhece as pessoas que fizeram acusações públicas e diz que algumas outras são falsas.

Por exemplo, Martínez foi acusado de abuso sexual pela primeira vez em 1969, há 50 anos. E passou anos em contato com crianças.

Denúncias públicas

No ano passado, em maio, foi outra vez Ana Lucía, hoje apresentadora, quem primeiro começou a denunciar Fernando Martínez, desta vez publicamente.

Ela saiu em muitos veículos de comunicação (mexicanos) falando do horror dos abusos. Ela me pareceu muito corajosa, mas eu não sentia que conseguiria fazer o mesmo.

Diante das denúncias, em novembro do ano passado, Martínez mandou a ela uma carta pedindo perdão.

'De joelhos, peço perdão'

'Estou horrorizado e quero, com esta breve mensagem, apelar a seu generoso coração e, de joelhos, pedir perdão. Ninguém além de você e Deus podem me dar a paz', diz a carta de Martínez (a íntegra está na foto abaixo, em espanhol).

'Sei que meu comportamento daquela época não esteve à altura da minha condição de padre que deve aproximar a Deus as almas confiadas a ele, sobretudo tratando-se, como educador, de uma pessoa com novas responsabilidades perante as pessoas confiadas a ele. Não tenho justificativas e o deploro', prossegue o texto.

Ele conta que foi punido: não tem nenhum cargo sacerdotal público, não veste a batina e mantém uma vida de oração.

Me parece que esses castigos são de fazer rir para alguém que sistematicamente e repetidamente abusou de crianças. Um predador sexual, um pedófilo confesso.

'Monstros do passado'

Quando comecei a ver Ana Lucía na mídia, seu nome me soava familiar, mas não me lembrava dela porque não cursamos a mesma série.

Até que fui contatado por outra conhecida da escola. Me disse que tinha sido abusada e perguntou se o mesmo tinha acontecido comigo.

Entrei em choque. Percebi que não eram apenas as vítimas que eu conhecia. Havia mais.

Naquele dia, acabei conversando com quatro vítimas de Martínez. De repente, recordando os abusos, todos os monstros do passado voltaram. Não é que voltei a sofrer o trauma, mas voltei a vivê-lo.

Os legionários responderam às denúncias dizendo que fariam uma investigação especial dos abusos de Martínez.

Queriam dizer que eram uma legião renovada e transparente e preocupada com as vítimas. E contrataram uma empresa americana de gerenciamento de crise, chamada Praesiduim.

Para seu relatório, não falaram com Ana Lucía, só falaram com uma de nossas conhecidas. Ela lhes entregou meus dados e aceitei falar com eles, mas fui com advogados.

Em troca do meu depoimento, pedi garantias de que (o que eu disse) não fosse compartilhado com os demais legionários. Mas nunca mais falaram comigo.

Então, das seis vítimas com quem eu tenho contato, apenas uma foi entrevistada.

Quando vi o relatório (dos legionários), fiquei irada, porque a investigação foi feita de modo a atribuir tudo ao fundador Marcial Maciel.

Ele é o único culpado porque já está morto. Porque todos já sabemos que ele era um criminoso e ninguém se importa em atribuir-lhe alguns crimes a mais.

Mas, por exemplo, sabemos que o diretor-geral atual dos legionários, Eduardo Robles Gil, sabia dos abusos desde 2014 e, na época, não abriu uma investigação.

No relatório, eles pedem perdão às vítimas. O que me deu vontade de vomitar. Porque a realidade é que eles nunca se importaram conosco.

Quando o relatório veio a público, a mídia o divulgou amplamente. Falou-se de uma 'investigação histórica' e deu-se a versão da legião, que supostamente se renovou e tenta atender suas vítimas.

Mas achei tão ruim que todos os aplaudissem, e foi aí que decidi falar publicamente para apoiar o que a Ana Lucía falou.

'O dano nunca prescreve'

Queremos que os crimes sexuais contra crianças não prescrevam. Porque ele de fato não prescreve: fica aí, permanente. Não se pode dar um prazo de tempo para denunciar algo tão terrível e tão difícil até mesmo de se falar.

É um abuso que quebra a infância e o desenvolvimento das crianças.

Hoje Martínez tem 80 anos e está recluso em uma casa em Roma, cumprindo um castigo supostamente duro para ele. Mas quem o encobriu está gerenciando a legião.

Essa é a nossa luta. Que (essas pessoas) não estejam mais cuidando de crianças que possam ser suas vítimas.

Eles têm muitas escolas no México e em outras partes do mundo, que são uma das suas principais fontes de renda. Então os pais, ao matricular seus filhos, além de colocarem-nos em perigo, estão financiando uma instituição criminosa.

Os legionários foram fundados por um criminoso, um pederasta. Se já se sabe disso e que a legião não fez nada contra quem encobriu esses crimes, então como instituição ela não tem razão de ser.

Só a prisão deterá criminosos e acobertadores de abusos.

'De vítima a algoz'

Pelo relatório, também descobrimos que nosso abusador foi, por sua vez, abusado por Marcial Maciel, o fundador dos legionários.

Em um discurso muito manjado, muitos dizem que se você é vítima se converte em algoz. Mas, para mim, isso chega a ser ofensivo. Eu fui vítima e nunca abusei de ninguém. Nem minhas colegas o fizeram.

Não tenho nenhuma compaixão por ele. Acho que tornaram (o caso) público para dar a impressão de que foi feito justiça. Mas ficou claro de que, em troca do seu silêncio, os legionários o protegeram e encobriram 50 anos de abusos.

Em 1997, nove ex-legionários mandaram uma carta (ao então papa) João Paulo 2º denunciando Marcial Marcel por abusos sexuais e tornaram públicas as acusações. E Martínez não está entre eles.

Eles nunca se importaram com as crianças. Para eles, só éramos um negócio de onde tirar dinheiro para se financiar e para nos abusar.

Mas esses abusos te marcam por toda a vida, a cada vítima de um modo diferente.

Eu saí da escola assim que consegui. Depois, me mudei de cidade e de país. Sempre tentava aumentar a distância, queria fugir. Tentava recomeçar minha vida em outro lugar onde ninguém me conhecesse.

Também cheguei à conclusão de que o meu trauma me impediu de ter filhos. Fisiologicamente estou saudável. Mas tenho um bloqueio. Sinto horror em pensar em ter uma filha pequena que possa ser abusada.

Eu entendo as vítimas que não falaram publicamente. Cada um tem seu tempo, processa de modo diferente. Eu respeito. Talvez daqui a alguns anos elas queiram fazer sua denúncia. Ou talvez nunca. Isso também se respeita. Eu sei que elas estão quebradas, porque eu também estou."