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"Childfree": as pessoas quem pedem (e até compram) distância de crianças

Paula Adamo Idoeta

Da BBC News Brasil em São Paulo

04/12/2019 15h40

"Não quero falar com seus filhos", a autora diz logo no título do artigo.

"Sou 'childfree' (livre de crianças, em tradução livre) por escolha. Recentemente, descobri que algumas pessoas rejeitam essa palavra. Elas a acham ofensiva e decidiram que ela não pode ser usada, o que é ridículo. Dei duro para me manter 'childfree', e não vou suavizar isso para agradar ninguém cujas decisões levaram a um resultado diferente."

Postado no Medium, site de publicações autorais sobre temas diversos, o texto é um dos mais recentes da onda "childfree" a gerar discussões acaloradas na internet em torno do tema: quais os limites para estabelecimentos, empresas e até mesmo pessoas restringirem a presença e a interação com crianças?

Esse debate envolve tanto direitos individuais — inclusive os direitos infantis — quanto a convivência coletiva.

Em setembro, o assunto voltou à tona quando usuários elogiaram a companhia aérea Japan Airlines por identificar onde bebês de até dois anos estarão sentados em seus voos, para que os demais passageiros possam levar isso em conta ao escolher seus assentos na hora do check-in.

"Obrigado, Japan Airlines, por me alertar onde bebês planejam berrar e gritar durante uma viagem de 13 horas. Isso deveria ser obrigatório", escreveu um usuário no Twitter, em um post que foi o estopim de uma longa discussão: de um lado, defensores de quem quer planejar sua viagem e ter mais sossego em um voo longo e, do outro, quem acha que existe uma crescente intolerância e discriminação contra crianças, que ainda estão aprendendo a conviver em sociedade ? inclusive por meio de suas interações com os adultos ao seu redor.

"Glamourização"

"Tento fazer uma leitura com empatia das pessoas que querem paz, (mas) acho que está crescendo essa glamourização de 'não gostar de crianças', e acho altamente problemático segregar uma parcela da sociedade — além de seus pais e, mais ainda, suas mães", diz à BBC News Brasil o blogueiro Thiago Queiroz, que discute paternidade no blog Paizinho Vírgula.

"Ainda é socialmente aceito ser intolerante a crianças, mas se você fizesse isso com qualquer outro grupo (negros, homossexuais) seria corretamente taxado de racista ou homofóbico."

A também blogueira Cila Santos, do blog Militância Materna, viveu esse debate na prática durante uma viagem com o filho, então com quatro anos.

"Estávamos indo de ônibus para Paraty e eram 7h da noite quando eu e meu filho conversávamos sobre o que a gente estava vendo, assim como muitas outras pessoas do ônibus conversavam", conta.

Imagem: Getty Images

"Mas a moça na nossa frente queria que eu fizesse ele calar a boca. Entendo que ela estivesse cansada, talvez planejasse dormir. Mas o que vou fazer, botar fita crepe na boca do meu filho? Parar de fazer o que os demais adultos faziam àquela hora, quando não estavam no celular? Acho que a voz infantil desperta algum gatilho nas pessoas ? 'o que é essa criança que não me pertence?'. O curioso é que não estamos em uma sociedade de adultos bem comportados, pelo contrário. Mas é diante de uma criança vulnerável que as pessoas soltam os cachorros."

Direito de não ter filhos

A origem do termo childfree remete a pessoas que querem reconhecido seu direito de não ter filhos, mas o conceito foi se expandindo para a ideia de restringir (ou vetar) o contato com crianças.

"Isso (a expansão do conceito) foi a mídia que fez. A essência da página é para quem não quer ter filhos e poder viver em paz com essa escolha", diz Ana, que pediu para ser identificada apenas pelo primeiro nome, referindo-se a uma página dedicada ao tema que ela criou no Facebook e que conta com 225 mil curtidas, além de versões também no Twitter e Instagram.

"Na página costumam nos atacar bastante, dizer que temos raiva de crianças, mas é só (a defesa do) direito de não ter filhos e contra essa pressão social que acompanha as meninas desde cedo", prossegue Ana.

Ela também discorda da comparação com outros grupos alvo de preconceito. "A gente ouve muito essa comparação, mas a infância é só uma fase da vida, e a pessoa vai deixar de ser criança um dia. É 1% de espaços que não querem crianças, perto dos 99% que as aceitam. Acho injusto dizer que isso quer dizer que queremos proibir as crianças (na sociedade). Elas têm direitos como qualquer pessoa, mas alguns lugares podem ter restrições para quem procura sossego."

Entre esses lugares estão, por exemplo, resorts e restaurantes exclusivos para maiores de idade, com oferta de "muita tranquilidade", "elegância" e "opções de lazer voltadas apenas para o público adulto".

Há ocorrências semelhantes em diferentes países do mundo: veto a crianças em estabelecimentos já motivaram reportagens de jornal e comentários acalorados de defesa e crítica em lugares como EUA, Itália, Alemanha e Reino Unido.

Em 2018, na ilha alemã de Rügen, um restaurante proibiu crianças menores de 14 anos no horário do jantar, depois que um grupo de jovens danificou sua despensa e porque queria oferecer um "oásis de paz" aos clientes.

Em Roma, dois anos antes, um restaurante vetou a entrada de menores de cinco anos, descrevendo-os como "terrores incontroláveis". Nos EUA, um restaurante da Carolina do Norte que em 2017 também limitou o ambiente a crianças acima de 5 anos disse ter tido um "aumento notável no número de reservas".

Comentando um desses vetos, um articulista do jornal britânico Guardian opinou que "se o seu filho é estúpido em público e você (pai) não faz nada a respeito, então você é mais estúpido ainda. Mas eu imploro, quando se trata de regras para jantar, não vamos fazer dos estúpidos o fator determinante. Porque, acredite ou não, depois de ter filhos, você não desenvolve automaticamente o desejo de ficar em casa todas as noites. Às vezes você tem vontade de sair e fazer uma boa refeição, como um ser humano normal. (...) E, talvez o mais importante, se você não permite crianças em restaurantes por causa do comportamento delas, está criando um monte de crianças que nunca saberão como se portar em restaurantes".

"Crianças não podem tudo"

De volta ao artigo do Medium que abre esta reportagem, a autora, que assina como traceybyfire, vê uma "perturbadora tendência em público: crianças tentam falar comigo ou chamar minha atenção olhando para mim ou dizendo 'olá' (...), e seus pais parecem tolerar esse comportamento. O que aconteceu com ensinar as crianças a não falar com estranhos? (...) Vou continuar a desviar meus olhos. Eu não quero falar com seus filhos", diz.

"Existe um movimento legítimo de mulheres que defendem o direito de não ter filhos e lutam contra a maternidade compulsória ou a romantização da maternidade", rebate Cila Santos.

"Mas é uma coisa ótima em uma onda péssima, de criticar crianças ou de não ter que lidar com crianças. Isso se chama conviver em sociedade. Se você está no espaço público, tem que conviver e tratar bem, engolindo seu descontentamento, como faz qualquer pessoa madura. Como as crianças não se defendem sozinhas, e só recentemente a infância foi reconhecida (como uma fase de desenvolvimento), até mesmo muitos pais não entendem que elas são pessoas que estão aprendendo como é o mundo."

Thiago Queiroz lembra que essa reação à presença de crianças acaba dificultando a convivência social de algumas famílias. "Se uma pessoa quer até pagar a mais para se sentar longe das crianças no avião, tudo bem, mas o que fazer com aquela criança que vai estar chorando? Vamos constranger a família dela? Se trata de proteger a infância, deixando as crianças serem crianças, mas também de proteger os pais e mães da experiência de se sentir constrangido na rua", argumenta.

Na primeira reportagem que a BBC News Brasil fez sobre o tema, em 2017, alguns comentaram que sua crítica não é às crianças em si, mas à educação e aos limites que elas recebem dos pais.

"Sou mãe e entendo que ninguém é obrigado a aguentar o filho dos outros, ainda mais crianças de pais que não dão limites. (...) O respeito também tem que partir de mim (mãe), em entender que nem todos os lugares vão receber crianças ? e tudo bem também!", argumentou uma leitora. "Não entendo por que querer levar sua criança num espaço onde ela não é bem-vinda. Tem lugares que não são recomendáveis para crianças. Crianças não podem tudo", afirmou outra.

"Cidades melhores para todos"

Mas quanto melhor o ambiente for preparado para receber as crianças, melhor ele receberá todos os cidadãos em geral, defende o advogado Pedro Hartung, coordenador do programa Prioridade Absoluta, da entidade de defesa dos direitos infantis Alana.

"É algo pragmático: cidades 'child friendly' (amigáveis às crianças) têm índices de desenvolvimento mais altos e são melhores para todos", explica ele.

"Calçadas que permitam às crianças correr e às mães passearem com seus carrinhos, por exemplo, são calçadas boas para todos. É uma estratégia de política pública e faz com que a criança seja vista não como objeto da família, mas como um cidadão com liberdade de ir, vir e permanecer nos lugares."

Ele argumenta, ainda, que a Constituição brasileira e o Código de Defesa do Consumidor garantem às crianças os direitos de frequentar espaços públicos e privados de prestação de serviços.

"A criança só aprende vivendo em sociedade, então precisamos encontrar formas de socialização ? mesmo que seja pela solidariedade e pela paciência com as famílias, porque pais também precisam ser amparados", argumenta. "Precisamos achar formas de conviver, independentemente de nossas diferenças."

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