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Os homens que querem ser ouvidos no debate sobre aborto nos EUA

Os homens que querem ser ouvidos no debate sobre aborto nos EUA - Alexandra Bowman
Os homens que querem ser ouvidos no debate sobre aborto nos EUA Imagem: Alexandra Bowman

James Jeffrey - BBC News

30/09/2019 20h04

Homens que tiveram sua paternidade negada estão se manifestando e querem ser ouvidos nos debates sobre o aborto.

Depois que a raiva se dissipou, depois de vencer o alcoolismo como mecanismo para lidar com a questão, mesmo depois de formar uma nova família, uma grande tristeza ainda persiste - e provavelmente será assim para sempre.

Essa é a mensagem passada por homens ao falar sobre suas experiências com aborto, uma voz raramente ouvida em meio ao debate acalorado sobre assunto nos Estados Unidos, embora os defensores desta prática argumentem que se trata de um grupo não representativo da maioria dos homens envolvidos nesta questão.

Atualmente, os posicionamentos masculinos mais comumente conhecidos sobre o tema se restringem aos grupos de parlamentares que pressionam para restringir os procedimentos de aborto, provocando a ira dos que defendem o direito de decisão individual das mulheres. Mas, agora, os homens que tiveram sua paternidade negada pelo aborto estão se manifestando.

Uma clínica de aborto do Alabama está sendo processada por um homem depois de sua namorada fazer um aborto com seis semanas de gestação, contra sua vontade, em 2017. O caso é o primeiro de seu tipo, porque o tribunal reconheceu o feto como autor do processo e o pai como representante legal dos interesses de seu bebê.

"Represento os homens que realmente querem ter um bebê", disse o homem a uma agência de notícias local em fevereiro. "Implorei a ela e tentei conversar sobre isso e ver o que eu poderia fazer. Mas, no final, não havia nada que pudesse fazê-la mudar de ideia."

Atualmente nos Estados Unidos, um pai não tem direitos legais para impedir o aborto de uma gravidez pela qual é responsável. As leis estaduais que exigem que um pai se pronuncie ou até mesmo seja notificado foram derrubadas pela Suprema Corte.

Lobo preso na armadilha

"Eu estava na casa dos 30 anos e tinha uma boa vida de solteiro em Dallas", diz Karl Locker, de 65 anos. "Me senti como um lobo com a perna presa em uma armadilha", disse Karl ao lembrar a sensação que teve quando uma mulher com quem ele estava saindo lhe disse que estava grávida.

No entanto, decidiu que tinha que apoiá-la - e sua gravidez. "Tentei de tudo, me ofereci para casar com ela, ficar com o bebê pessoalmente ou oferecê-lo para adoção", diz Locker, explicando que ele achava que manter a criança seria a coisa certa a fazer. "Ela disse que nunca poderia dar seu filho para adoção - isso não fazia sentido."

No final, ele levou a mulher à uma clínica e pagou pelo aborto. Depois, se mudou para a Califórnia, porque não suportava o que havia feito. "Não sabia como iria sobreviver. Não ia pular de uma ponte, mas provavelmente teria bebido até a morte", diz Locker, que acredita que se reconectar com sua fé e iniciar uma família com outra mulher o salvou. "Penso no que aconteceu todos os dias pelos últimos 32 anos."

Trauma

Os homens geralmente estão envolvidos em um aborto de quatro maneiras, as quais podem deixá-los traumatizados quando refletem depois sobre seus papéis, dizem os líderes de grupos de aconselhamento para homens pós-aborto.

Às vezes, obrigam uma mulher a fazer um aborto contra a vontade dela. Outros dizem que apoiarão a decisão da mulher de qualquer maneira, enquanto influenciam essa decisão na direção de um aborto. Alguns descobrem o aborto após o fato, ou o aborto segue em frente contra seus desejos.

Pesquisas indicam que a maioria das mulheres diz não se arrepender de ter feito um aborto, mas menos estudos foram feitos sobre as reações dos homens.

Os dados que existem sobre homens provêm de grupos de apoio pós-aborto, ou seja, são baseados naqueles que procuram ajuda, dificultando amplas observações estatísticas. Mas seus relatos incluem pontos em comum, como sentimentos de raiva, culpa, vergonha e profunda tristeza nas datas de aniversário do aborto.

"Os homens devem ser protetores, então, há uma sensação de fracasso - deixar de proteger a mãe e o feto, deixar de ser responsável", diz Chuck Raymond, de 61 anos, cuja namorada de 18 fez um aborto no final dos anos 1970, quando ele era adolescente. "Há uma incrível culpa e vergonha por não ter cumprido esses papéis."

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Chuck Raymond e sua então namorada Linda estão casados até hoje
Imagem: Charles Raymond

Raymond acha que uma criança teria interferido nos seus planos de estudos e seu treinamento militar na academia militar de West Point, onde os cadetes não podem se casar ou ter filhos. "Uma vez que me envolvi no treinamento, suprimi aquele fato, mantendo-o fora da minha consciência. Anos mais tarde, porém, percebi que uma tragédia havia ocorrido e que havíamos feito uma escolha trágica".

Ele compara a angústia mental e emocional após um aborto ao transtorno de estresse pós-traumático de ter lutado em uma guerra.

'O aborto vem em primeiro lugar, e que se dane o resto'

A decisão histórica da Suprema Corte em 22 de janeiro de 1973 é o caso mais conhecido sobre aborto, por ter legalizado o procedimento nos Estados Unidos. Mas dois casos posteriores tiveram mais impacto sobre os homens, diz Allen Parker, presidente da The Justice Foundation, um centro de direito conservador no Texas.

Após uma decisão da Suprema Corte de 1976, o consentimento do pai em um aborto não é mais necessário. Em 1992, o tribunal foi mais longe, dizendo que os pais não têm o direito de ser notificados.

"Há tantas contradições em torno de tudo isso - o aborto vem em primeiro lugar e que se dane o resto", diz o reverendo Stephen Imbarrato, um padre católico e ativista antiaborto.

Antes de ingressar no sacerdócio, Imbarrato engravidou sua namorada em 1975 e a levou a fazer um aborto, descobrindo décadas depois que ela estava grávida de gêmeos. "Os homens se arrependem da paternidade perdida, porque têm um chamado inerente para ser pais".

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O padre Imbarrato engravidou sua namorada em 1975 e a levou a fazer um aborto
Imagem: Father Stephen Imbarrato

Outros argumentam, porém, que o número de homens traumatizados por abortos é incomum. Gillian Frank, historiadora da sexualidade da Universidade da Virgínia, diz que a decisão de 1992 apontou que, "na maioria dos contextos em que havia um relacionamento estável e amoroso, homens e mulheres tomavam a decisão juntos".

"E quando os homens estão ausentes das decisões, geralmente é porque existe um risco de violência ou coerção no relacionamento. Essas decisões [pelos tribunais] se baseavam no fato de [o feto] não ser uma criança, portanto a situação não é análoga à custódia de uma criança."

Não há consenso sobre a proporção de mulheres que abortam sem avisar os homens, ou apesar deles, ou por causa deles.

De acordo com o Guttmacher Institute, uma organização de pesquisa política que analisa o aborto nos Estados Unidos, metade das mulheres que fizeram abortos em 2014 disseram que não queriam ser mães solteiras ou estavam tendo problemas com o marido ou parceiro.

"Quando as pessoas dizem que estão argumentando para que as vozes dos homens sejam ouvidas, trata-se realmente de tentar controlar as mulheres e suas decisões", diz Frank. "Não vejo isso como uma ausência do homem, pelo contrário. Homens sempre foram muito presentes na capacidade das mulheres de controlar seu destino reprodutivo."

Antes da legalização, ela observa, isso significava que mulheres tinham de comparecer perante um comitê de médicos, geralmente homens, para defender a necessidade de um aborto, e continua até hoje por meio "dos homens que controlam os produtos farmacêuticos e por trás das tomadas de decisão".

"Nos protestos em frente a clínicas de aborto, geralmente são homens que lideram as manifestações, subindo nos carros para gritar por megafones", diz Sarah Wheat, que trabalha para a Planned Parenthood em Austin, capital do Texas, cidade que é um importante campo de batalha sobre a legislação do Estado sobre aborto. A Planned Parenthood é uma organização que fornece serviços de saúde sexual, dos quais cerca de 6% envolvem aborto, diz Wheat.

"Geralmente é um ato intimidador, projetado para envergonhar e estigmatizar. E, quando vamos ao Congresso, encontramo um ambiente muito semelhante. Da nossa perspectiva, parece que os homens ainda estão muito bem representados."

De fato, grande parte da reação contra o envolvimento dos homens no aborto está imersa no contexto histórico de um patriarcado dizendo às mulheres o que fazer.

"Há um descompasso. Os homens têm uma responsabilidade , portanto, seus salários ficam atrelados à pensão alimentícia se um bebê nascer, mas, ao mesmo tempo, não têm direitos sobre um aborto em andamento", diz Locker.

Ativismo

Theo Purington, de 34 anos, cuja namorada grávida fez um aborto em 2006 contra sua vontade, diz que isso o deixou "deprimido e abalado". A experiência levou-o a se envolver no ativismo antiaborto e a prestar aconselhamento a homens pós-aborto.

bbc 3 - Theo Purington - Theo Purington
Theo Purington, de 34 anos, diz que sua namorada fez um aborto em 2006 contra sua vontade
Imagem: Theo Purington

"Se os homens precisassem autorizar um aborto, acho que você veria uma queda de 50%, e é por isso que [os fornecedores de serviços de aborto] não querem homens envolvidos", diz Purington.

"A maior injustiça neste país hoje é que um homem não pode proteger seu filho ainda não nascido do aborto [da mesma maneira que] proteger nossos filhos faz parte de nossa responsabilidade."

Benefícios

Amy Hagstrom Miller, que dirige a Whole Woman's Health, uma empresa que administra sete clínicas de aborto em cinco Estados americanos, diz: "Sim, os homens estão claramente envolvidos no começo, em termos de engravidar a mulher".

Mas acrescenta: "Quando se trata de seu corpo, há uma linha que deve ser traçada. É a gravidez da mulher, ela a carrega em seu corpo, e você não pode dizer a alguém o que fazer com seu corpo e forçá-las a dar à luz. Se fizer isso, você pode invadir terrenos aterradores."

Hagstrom Miller diz que o movimento pelos direitos ao aborto não ajudou a si próprio ao enquadrar o procedimento apenas como uma questão de mulher. "O aborto beneficia mulheres, homens e famílias. Milhões de homens se beneficiaram de ter acesso ao aborto."

Ela observa que mais de 60% das pacientes de aborto já são mães - um número apoiado pelo Instituto Guttmacher - e que, em sua clínica, muitos casais enfrentam uma gravidez não planejada e todos os problemas complexos que cercam isso. Alguns fatores que levam em conta são o tamanho da família que querem ter e como um novo filho afetará sua situação ou a família atual.

Mas, contrariando os envolvidos no aconselhamento pós-aborto, é o que pode acontecer mais adiante que não está sendo reconhecido ou tratado o suficiente.

"Por causa da retórica que existe por aí, as pessoas não conseguem abordar a sensação de perda que afeta homens e mulheres, seja você a favor do direito ao aborto ou não", diz Kevin Burke, assistente social e cofundador da Rachel's Vineyard, que administra retiros de fim de semana para homens e mulheres pós-aborto. "Mas você não tem permissão para falar sobre nada disso, então, não pode processar esse sentimento."

Burke acrescenta como descobriu através de seu trabalho de aconselhamento com homens de minorias raciais que as consequências de um aborto podem ser ampliadas se um homem tiver enfrentado dificuldades em sua criação.

"A experiência do aborto para homens, especialmente aqueles que passaram por perdas, abusos e traumas anteriores, pode contribuir para que eles expressem, de forma destrutiva, sua tristeza e raiva por algo que ocorreu na infância, através do sentimento que vivenciam com um aborto", diz Burke.

Muitos observam que não é preciso ser um defensor do aborto para sentir tristeza por ter feito um ou ser assombrado pela dúvida de se fez a coisa certa. Por isso, explica Burke, mais tarde, muitos homens e mulheres enfrentam muitos problemas morais e espirituais.

Hagstrom Miller diz que gostaria de ver o debate "se afastar de uma conversa sobre direitos para uma sobre dignidade e respeito, empatia e compaixão".

"Odeio quando você tem pessoas fora das clínicas de aborto gritando coisas como 'Você vai para o inferno'", diz Locker, que se juntou a grupos de oração fora das clínicas.

"Por um lado, não está sendo feito o trabalho [de dissuadir a mulher], e isso não demonstra compaixão e só condena a mãe, que está se sentindo como se também tivesse presa nessa armadilha."

Enquanto isso, poderemos ouvir cada vez mais relatos sobre homens pós-aborto, diz Theresa Bonopartis, diretora da Lumina, uma organização que aconselha homens e mulheres que realizaram esse procedimento.

"Há uma mudança ocorrendo, os homens estão fartos", diz Bonopartis. "Os homens achavam que não tinham direito a opinar e que, se falassem, mas, agora, está sendo sentido o impacto e repercussões de 45 anos de abortos."

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