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A mulher que criou 2.500 personalidades para sobreviver a abusos do próprio pai

Jeni Haynes testemunhou contra o pai no tribunal por meio de seis personalidades que a ajudaram a superar as violências que sofreu - Arquivo Pessoal/Jeni Haynes - BBC
Jeni Haynes testemunhou contra o pai no tribunal por meio de seis personalidades que a ajudaram a superar as violências que sofreu Imagem: Arquivo Pessoal/Jeni Haynes - BBC

Frances Mao

Da BBC News em Sydney

06/09/2019 15h44

Jeni Haynes testemunhou contra o pai no tribunal por meio de seis personalidades que a ajudaram a superar as violências que sofreu.

Só havia uma mulher no banco de testemunhas aquele dia, mas dela surgiram seis pessoas dispostas a testemunhar os abusos terríveis que sofreram.

"Eu entrei no tribunal, sentei, fiz o juramento e algumas horas depois voltei ao meu corpo e deixei o local", diz Jeni Haynes à BBC News.

Quando criança, Jeni foi estuprada e torturada inúmeras vezes pelo pai, Richard Haynes, no que a polícia australiana classificou de um dos piores casos de abuso infantil do país.

Para sobreviver ao horror, ela usou a mente e uma tática extraordinária - criou novas identidades para se descolar da dor.

O abuso era tão extremo e persistente que ela diz que precisou criar 2.500 personalidades diferentes para sobreviver.

Num julgamento histórico em março, Jeni apresentou evidências contra o seu pai por meio de algumas dessas personalidades, incluindo a de uma menina de quatro anos chamada Symphony.

Acredita-se que esse é o primeiro caso na Austrália, e talvez no mundo, em que uma vítima diagnosticada com Transtorno de Personalidade Múltipla ou Transtorno Dissociativo de Identidade (TDI) usa uma de suas personalidades para testemunhar contra o agressor e isso resulta em uma condenação.

"Não estávamos com medo. Tínhamos esperado muito tempo para dizer a todos exatamente o que ele fez conosco e agora ele não poderia nos calar", diz Jeni.

No dia 6 de setembro, Richard Haynes, agora com 74 anos, foi condenado a 45 anos de prisão por um tribunal de Sydney.

Aviso: Contém descrições de violência e abuso de criança

'Eu não estava segura na minha própria mente'

A família Haynes se mudou de Bexleyheath, em Londres, para a Austrália em 1974. Jeni tinha quatro anos e o pai já havia começado a abusar dela. Em Sydney, isso escalou para o sadismo, com violações quase diárias.

"Os abusos do meu pai eram calculados e planejados. Era intencional e ele desfrutava cada minuto", disse Jeni, num depoimento para o tribunal em maio.

Jeni Haynes  - BBC - Arquivo Pessoal/Jeni Haynes  - Arquivo Pessoal/Jeni Haynes
Jeni usou as múltiplas personalidades como estratégia para aguentar os abusos do pai
Imagem: Arquivo Pessoal/Jeni Haynes

Ela abriu mão dos direitos de ter a identidade preservada, como vítima de abuso, para que o pai pudesse ser identificado.

"Ele me ouvia implorar para que parasse, ele me ouvia chorar, ele sabia da dor e do terror que estava me infligindo. Ele via o sangue e o dano físico que havia causado. E no dia seguinte optava por fazer tudo de novo."

Segundo Jeni, Haynes também promoveu uma lavagem cerebral na filha para fazê-la acreditar que podia ler a mente dela. Ele ameaçava matar a mãe, o irmão e a irmã de Jeni, se ela pensasse sobre os abusos ou contasse sobre eles.

"Minha vida interior foi invadida pelo meu pai. Eu não conseguia sequer me sentir segura dentro da minha própria cabeça", diz Jeni.

"Eu não podia mais refletir sobre o que estava acontecendo comigo e chegar às minhas próprias conclusões."

Ela passou a compor seus pensamentos por meio de letras de canções, para tentar escondê-los.

Repetia mentalmente, por exemplo, a música Do You Really Want to Hurt Me, gravada pela banda britânica Culture Club em 1982.

O pai restringia as atividades sociais que ela tinha na escola a um mínimo, para impedir o contato dela com outros adultos.

Jeni Haynes - BBC - Arquivo Pessoal/Jeni Haynes  - Arquivo Pessoal/Jeni Haynes
Richard Haynes em foto com seus três filhos. Jeni aparece à direita
Imagem: Arquivo Pessoal/Jeni Haynes

Jeni aprendeu a se manter silenciosa e discreta, porque se fosse "vista" - como quando o treinador de natação dela disse ao pai para encorajar o seu talento natural - seria punida.

O pai de Jeni também lhe negava tratamento médico das feridas causadas pelos espancamentos e pelo abuso sexual - machucados que se transformaram em problemas crônicos.

Agora, aos 49 anos, Jeni tem danos irreparáveis na visão, no queixo, intestino, ânus e cóccix. Passou por várias cirurgias, entre elas uma colostomia em 2011.

Os abusos continuaram até Jeni completar 11 anos, quando a família se mudou de volta para o Reino Unido. Os pais dela se divorciaram pouco depois, em 1984. Jeni acredita que ninguém, nem mesmo a mãe, sabia o que ela havia sofrido.

'Ele estava abusando de Symphony'

Especialistas australianos se referem à condição de Jeni como Transtorno Dissociativo de Identidade e dizem que isso é consequência dos abusos extremos que sofreu quando criança, num ambiente que deveria ser seguro.

"Esse transtorno é uma estratégia de sobrevivência", diz Pam Stavropoulos, especialista em trauma infantil.

Quanto mais cedo for o trauma e maior a gravidade do abuso, mais provável é que a criança tenha de contar com a dissociação para sobreviver, o que leva à criação de "múltiplas personalidades".

Jeni diz que a primeira personalidade que criou foi a de Symphony, uma menina de quatro anos.

"Ela sofreu cada minuto dos abusos do meu pai. Quando ele estava abusando de mim, a filha dele, estava, na verdade, abusando de Symphony", disse Jeni à BBC News.

Conforme os anos foram se passando, Symphony criou ela própria outras personalidades para resistir aos abusos. Cada uma de suas centenas de personalidades tinha um objetivo em comum - conter um elemento do abuso, como um ataque particularmente cruel, uma imagem ou cheiro perturbador.

"Um alter ego apareceria atrás da mente de Symphony para assumir a experiência", explicou Jeni.

"Essas personalidades podem ter sido minhas defesas contra o meu pai."

É durante essa conversa que Symphony se apresenta, após uma hora e meia de diálogo. Jeni havia alertado que isso poderia acontecer e há sinais físicos que avisam da chegada de outra personalidade - Jeni começa a ter dificuldades para articular uma resposta antes da transformação.

"Oi, eu sou a Symphony. A Jeni está em apuros. Eu vou te contar sobre tudo isso, se você não se importar", diz.

A voz de Symphony é mais alta, o tom mais infantil e de ritmo mais rápido. A gente conversa por 15 minutos, e a memória detalhada dela sobre eventos ocorridos há décadas atrás é impressionante.

"O que eu fiz foi pegar tudo o que eu achava que era precioso sobre mim, tudo o que era importante e bonito e esconder isso do papai, para que quando ele abusasse de mim, ele não estivesse abusando de um ser humano pensante", diz Symphony.

Algumas das 'pessoas' que Jeni diz que a ajudaram a sobreviver

- Muscles é um adolescente parecido com Billy Idol. Ele é alto e usa roupas que mostram seus braços fortes. Ele é calmo e protetor;

- Volcano é muito alto e forte e se veste dos pés a cabeça com couro preto. Tem cabelo muito louro;

- Ricky só tem oito anos, mas usa terno cinza. Tem cabelo curto e ruivo;

- Judas é baixo e de cabelos ruivos. Ele usa calças cinzas de uniforme escolar e um moletom de cor verde viva;

- Linda é alta e magra. Usa uma saia estilo anos 50. O cabelo fica preso num rabo de cavalo elegante;

- Rick usa óculos imensos - do mesmo tipo que Richard Haynes usava. As lentes distorcem o rosto dele.

Em março, Jeni foi autorizada a testemunhar na corte como Symphony e outras cinco personalidades. Cada uma delas compartilhou diferentes aspectos do abuso.

A sentença foi proferida por uma única juíza, porque os advogados consideraram que o caso seria traumático demais para um júri.

Haynes inicialmente foi acusado de 367 crimes, incluindo múltiplos estupros. Jeni, com as suas diferentes personalidades, relatou evidências detalhadas de cada um desses crimes.

As múltiplas identidades permitiram que ela preservasse essas memórias que, de outro modo, poderiam ter se perdido com o trauma.

Os promotores convocaram diversos psicólogos e especialistas em Transtorno Dissociativo de Identidade para explicar sobre a condição de Jeny e atestar a credibilidade do depoimento dela.

"Minhas memórias como pessoa com Transtorno Dissociativo de Identidade estão intocadas como quando se formaram", disse ela à BBC News antes de passar a falar no plural.

"Nossas memórias estão congeladas no tempo. Se eu preciso delas, é só buscar."

Symphony se dispôs a reviver "em detalhes torturantes" as particularidades dos crimes cometidos durante sete anos na Austrália.

Muscles, o rapaz de 18 anos, iria fornecer informações sobre os abusos físicos enquanto Linda, uma elegante jovem, testemunharia sobre o impacto da violência na vida escolar de Jeni e seus relacionamentos.

Symphony "tinha esperanças de usar o depoimento para crescer também", diz Jeni. "Mas só conseguimos chegar até 1974. Ele (Richard Haynes) não conseguiu lidar com isso."

Quando Symphony estava falando havia duas horas e meia, no segundo dia de julgamento, Richard Haynes se declarou culpado de 25 acusações - as "piores delas", diz Jeni. Dezenas de outras foram acrescidas quando a juíza deu a sentença.

'O Transtorno Dissociativo de Identidade salvou minha alma'

"É um caso histórico porque, até onde sabemos, é a primeira vez que o depoimento de diferentes personalidades de uma pessoa com Transtorno Dissociativo de Identidade é validado num sistema judicial, levando a uma condenação", diz Cathy Kezelman, presidente da fundação Blue Knot, uma organização australiana de auxílio a sobreviventes de traumas na infância.

A primeira denúncia dos abusos foi feita por Jeni em 2009. Levou 10 anos para que a investigação policial culminasse na condenação e prisão de Richard Haynes.

Ele foi extraditado de Darlington, no nordeste da Inglaterra em 2017, onde cumpria uma pena de sete anos por outro crime. Pouco antes, Richard Haynes estava vivendo com a família estendida de Jeni, para quem dizia que a filha era mentirosa e manipuladora.

Desde que soube dos abusos sofridos pela filha, a mãe de Jeni, que se divorciou de Haynes em 1984, se tornou uma grande apoiadora dela na luta por justiça.

Mas, por décadas, Jeni teve dificuldades para receber apoio para superar o trauma. Ela diz que terapeutas e outros profissionais a dispensavam porque a história dela levantava desconfianças ou era traumática demais para que conseguissem lidar com o problema.

Transtorno Dissociativo de Identidade

- Dissociação: desconexão de si com o mundo. É considerada uma resposta natural a um trauma;

- TDI pode ser desencadeado se uma pessoa, particularmente uma criança, sobrevive a um complexo trauma que perdura ao longo de um tempo;

- Não ter apoio de um adulto, ou conviver com um adulto que diz que o trauma não é real, pode contribuir para desenvolver TDI;

- Uma pessoa com TDI pode sentir que é formada por múltiplas pessoas que pensam, agem ou falam de maneira diferente e que podem ter memórias e experiências conflitantes;

- Não há tratamento medicamentoso específico para esse transtorno - especialistas possivelmente usarão técnicas de terapia para ajudar os pacientes.

Fonte: Mind

Embora seja hoje em dia passível de diagnóstico seguro, o TDI frequentemente levanta dúvidas entre a população em geral e até em círculos médicos.

"Essa condição é tão específica que gera descrédito, incredulidade, desconforto sobre as causas disso - parcialmente porque as pessoas acham difícil acreditar que crianças podem ser submetidas a abusos tão extremos", diz Stavropoulos.

"É por isso que o caso de Jeni é tão importante. Ele gera consciência e conhecimento sobre esse transtorno desafiador."

Jeni diz que o TDI salvou sua vida e sua alma. Mas esse mesmo transtorno e os traumas a que foi submetida também são fontes de obstáculos.

Ela passou a vida estudando e chegou a obter mestrado e doutorado em direito e filosofia, mas enfrentou dificuldades para conseguir emprego. Jeni vive com a mãe e as duas dependem de pensões para sobreviver.

Em depoimento escrito para o julgamento do pai, Jeni disse que ela e suas múltiplas personalidades "passaram a vida agindo com receio e em constante vigilância".

"Nós escondemos a nossa multiplicidade e batalhamos por uma consistência de comportamento, atitude e crenças, o que era frequentemente impossível. Ter 2.500 vozes, opiniões e atitudes é extremamente difícil de lidar", explicou ela.

Jeni sentou a alguns metros de distância do pai no tribunal, no dia 6 de setembro, para presenciá-lo sendo condenado a 45 anos de prisão. Haynes, que tem problemas de saúde, vai ter que cumprir pelo menos 33 anos até ter direito de pedir liberdade condicional.

A juíza Sarah Hugget, que condenou Haynes, disse que ele provavelmente morrerá na cadeia. Os crimes dele foram "profundamente perturbadores e pervertidos" e "completamente abomináveis e chocantes", afirmou.

A juíza disse ainda que era "impossível" uma condenação que fosse suficiente para refletir a gravidade do dano que ele causou.