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'Outro dia estava com R$ 12 mil negativo, mas o dinheiro volta': a baiana que dá aulas de natação na praia a quem não pode pagar

Victor Uchôa

De Salvador, para a BBC Brasil

26/03/2018 16h01

Sulamita Araújo faz do Porto da Barra seu espaço de ensino há 17 anos. Na praia, contudo, ela não atende pelo nome. É a professora Peixinho, uma mulher cheia de energia que rege a turma com assobios, ordens de exercício, rigidez, sorrisos e muita conversa.

Na Escola Peixinho Natação Porto da Barra, bebês, crianças, jovens e adultos têm aulas de natação com a baiana de 52 anos seis vezes por semana (às vezes sete) nas águas calmas e cristalinas da Baía de Todos os Santos.

Atualmente, são 105 alunos. Do total, 70 são isentos da mensalidade de R$ 250. São crianças e adolescentes cujos pais não podem arcar com aulas de natação ou até mesmo adultos que trabalham, mas não poderiam encaixar as braçadas no orçamento.

"Muita gente acha que estou fazendo caridade, mas não é isso. Eu só quero dar uma chance a quem não pode pagar um clube ou uma academia. E até a quem poderia pagar, mas ainda sofre preconceito nesses lugares. Aqui tem gay, casal homossexual, tem negro, tenho uma aluna com um problema de saúde que um clube não aceitaria. Aqui, botou a touca, são pessoas iguais. Médico, porteiro, professora, estudante, desembargadora ou desempregado, não tem diferença nenhuma", define Peixinho.

Pagando ou não a mensalidade, todos os integrantes da escola ganham da professora, diariamente, um café da manhã na areia da praia, com frutas, pães e suco. Aos sábados, a variedade é maior. Se alguém faz aniversário, ganha bolo, cachorro-quente e salgados.

Rotina intensa

A escola também organiza viagens para provas de maratona aquática, especialmente a Travessia dos Fortes e a Rei e Rainha do Mar, ambas no Rio de Janeiro. Também neste caso, os alunos que podem arcam com seus custos de inscrição, passagens, hospedagem e alimentação. Para os que não conseguem, entra Peixinho.

"Ela é uma dessas pessoas que a gente encontra no Brasil e que deveria ser um espelho, como professora de natação e como educadora física. Ela se sacrifica, se dedica ao coletivo. Nós só podemos aplaudir", afirma Luiz Lima, ex-nadador profissional com participação em duas olimpíadas, Atlanta 96 e Sydney 2000.

Organizador da prova Rei e Rainha do Mar, Lima também mantém um projeto social com natação no Rio de Janeiro. Para ele, o trabalho de Peixinho tem o mérito de ser "democrático nas duas pontas".

"Não é só assistência social. Ela usa a natação para formar cidadãos e ainda dá a oportunidade a quem quiser progredir enquanto atleta, botando pra competir", observa.

Para conseguir bancar os custos das aulas, dos materiais e das viagens dos alunos - e pagar as próprias contas - Peixinho dispõe de um leque variado de rendas, cujos valores prefere não revelar.

Além das mensalidades de quem paga pela natação na praia, ela dá aulas na piscina de um condomínio próximo ao Porto, realiza recreação em festas infantis e faz sessões de massagem watsu, uma técnica de relaxamento executada, é claro, na água. Seus dias, entretanto, são prioritariamente no Porto, onde dá aulas de manhã, pela tarde e à noite.

"Ela não descansa, não tem férias nem folga. Desce pra praia no sol, na chuva, com trovoada, desce até com dor de dente. Só tem dois dias do ano que ela não dá aula: Natal e 1º de janeiro, que é o aniversário dela. Mesmo assim, não duvido que ela desça se aparecer um aluno", diz Priscila Jatobá, que nada com Peixinho há 10 anos e hoje auxilia na gestão da escola.

Família

Ela tem duas justificativas pessoais para sua dedicação. De um lado, sente que tem obrigação de passar para os alunos aquilo que recebeu dos seus professores ao longo da vida.

A segunda razão ela revela em meio a um emocionado pranto: "Nunca tive afeto na minha família. Fui abusada por meu pai, minha mãe não me dava carinho e fui me afastando dos meus irmãos. Eu sempre sofri com essa carência e tento dar aos meus alunos aquilo que sempre quis ter."

Entre alunos e ex-alunos de Peixinho, a ideia de família é recorrente.

"Tia Peixinho é como uma mãe pra mim. A gente nunca teve patrocínio, mas nunca deixou de competir e de viajar. A gente vendia rifa pra ajudar a pagar tudo", conta Jardel de Souza, 21 anos, nadando há 15 com Peixinho sem nunca ter pago mensalidade. Para ele, a natação virou sustento. Hoje, Jardel é salva-vidas num resort no Litoral Norte da Bahia.

Outra que vê uma mãe na professora é Kátia Fernanda, 37, conhecida na praia como Katinha. Há 12 anos, ela sofre de insuficiência renal e faz hemodiálise três vezes por semana. Em 2011, foi contemplada na fila de transplantes de rim, mas seu corpo rejeitou o órgão.

"Eu nem sei como estaria hoje sem a natação. É o que me dá força pra não desistir de lutar pela minha saúde. E eu sou grata a Peixinho por me aceitar do jeito que sou", diz a aluna, integrante da escola há 10 anos, também sem custos.

Contrariando os prognósticos médicos, Katinha já participou de provas de 1 km no mar. "É uma emoção muito grande ir se aproximando da praia e bater na faixa de chegada. É inesquecível", descreve ela, que dá aulas de reforço escolar.

Já o operador de logística Ricardo Sales, 37, até seis meses atrás não sabia nadar e, confessa, tinha medo do mar. Como levava o filho Caio, de 13 anos, para as aulas com Peixinho, Ricardo também ganhou atenção da professora.

Em pouco tempo, venceu o medo. Em janeiro, nadou 3 km, parte deles em mar aberto. "Hoje eu sinto orgulho de mim mesmo e a ajuda dela foi essencial. Nadar com Peixinho é uma terapia". Detalhe: com a natação, Ricardo perdeu 20 quilos.

"Aqui a gente encontra uma diversidade de níveis de nadadores e também uma diversidade social que jamais veria num clube. Peixinho junta todo mundo, experiente ou iniciante, profissional liberal, empresário ou gente que não trabalha. O que ela faz é um capítulo a parte", diz o aluno Eron Garcia de Santana, 52, médico anestesista.

Na natação, ele tem a companhia da esposa Ana Valéria, também médica.

Trajetória

Sulamita começou a se tornar Peixinho muito cedo. Nascida no apartamento em que mora até hoje, suas primeiras lembranças remetem ao Porto da Barra.

"Com 4 anos, eu estava nas pedras e uma tia começou a se afogar. Eu entrei com uma boia dessas de câmara de pneu de caminhão e trouxe ela pra areia", conta.

Então, começou a nadar num clube perto dali, que já nem existe mais. Pequena, magra e veloz, foi apelidada de "pititinga" pelo primeiro treinador. Mas, aos 5 anos, mudou de clube, de treinador e de apelido. Na primeira competição nacional, ganhou duas medalhas de ouro. Virou Peixinho.

"Conheço Peixinho desde que ela era um peixinho mesmo, pequeninha, solta nessa praia", diz o auditor fiscal aposentado Luiz Eládio Humbert, o Lalado, de 72 anos.

Hoje, ele faz questão de levar a neta Maria Júlia, de 1 ano e 8 meses, para as aulas com a professora. "Maju começou com 7 meses. Com Peixinho, entrego sem medo".

Peixinho rememora sua trajetória como competidora através de recortes de jornal e fotografias que guarda numa mala. Foram muitas medalhas e recordes, dos quais ela lembra sem modéstia e com alguma mágoa. "Fui a melhor nadadora da Bahia, mas não tinha nome nem apoio da família."

Aos 14 anos, começou a se afastar das competições e, aos 18, virou assistente das aulas de natação infantil de um clube. "Foi quando descobri o que queria ser: professora. Pra mim, meus alunos são como meus filhos."

Nos anos seguintes, Peixinho passou por quase todos os clubes e academias da capital baiana, à frente de escolinhas de natação ou comandando equipes competitivas. Aos 32, depois de idas e vindas, concluiu o curso de Educação Física.

Em 2001, virou sócia de um espaço de natação. Ali, uma mulher chegou com o filho - que tinha paralisia cerebral - e afirmou não ter dinheiro para as mensalidades do garoto. "Eu queria botar a criança na água, meu sócio não aceitou. Em um mês, saí da sociedade no prejuízo, mas não dava pra mim."

Adepta do candomblé e filha de Iemanjá, Peixinho afirma lembrar do momento em que definiu seu destino. "Cheguei aqui no Porto e fiquei pensando, meditando. Foi como se minha mãe Iemanjá me dissesse: faça sua escola aqui."

Desde então, são 17 anos sem férias, mas de boas histórias. Sem precisão na contagem, ela estima que mais de 2 mil pessoas já passaram por suas aulas na praia, sempre com uma média de 70% de gratuidade.

"Não tem nada a ver com dinheiro. Muitas vezes eu fico endividada, outro dia estava com R$ 12 mil negativo no banco, mas o dinheiro volta, os alunos que podem ajudam e assim a gente segue. Minha maior conquista é ver meus alunos felizes", define.

Mar Grande

Uma das iniciativas mais ousadas de Peixinho foi ter realizado cinco edições independentes da travessia Mar Grande-Salvador, uma das provas de águas abertas mais tradicionais do país.

Desde 1955, uma vez por ano, nadadores rompem a braçadas 12 km da Baía de Todos os Santos, entre Mar Grande, na Ilha de Itaparica, e o Porto da Barra, em Salvador. Para isso, contudo, precisam desembolsar uma quantia salgada em cada uma das etapas de classificação e pela taxa de federação.

Como a maioria de seus alunos não tem como arcar os custos - e os organizadores, segundo ela, não chegaram a se sensibilizar com os pedidos de gratuidades - ela resolveu fazer sua própria travessia, batizada de Mar Grande-Salvador Sem Compromisso, que em janeiro deste ano chegou à quinta edição, com 19 alunos nadando os 12 km e mais de 20 completando distâncias menores.

Diego Albuquerque, presidente da Federação Baiana de Desportos Aquáticos (FBDA), que organiza a prova oficial, elogia o trabalho de Peixinho e afirma desconhecer a solicitação de cortesias, mas coloca a entidade à disposição da professora para conversas futuras.

Quem participou da prova Sem Compromisso este ano foi Allan do Carmo, baiano que esteve nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016, e que já venceu a Mar Grande oficial seis vezes.

"Esse ano pude participar e foi um prazer, especialmente por nadar ao lado dos nadadores do projeto dela. Ela faz um trabalho social importante, traz para a maratona aquática pessoas de comunidades carentes, pessoas que não têm oportunidade de nadar outras provas".

Ter a presença de um atleta olímpico na prova é simbólico para incentivar jovens como Pilar Rodrigues, 13 anos, apontada por Peixinho como a próxima baiana a despontar nas maratonas aquáticas. Ela também completou os 12 quilômetros da travessia Sem Compromisso.

"Com Tia Peixinho, o treino é sempre especial. Aqui é como ter uma segunda família. Ela cobra muito, mas também é carinhosa. Eu me sinto muito preparada para as competições", afirma a garota, que tem a companhia da mãe nos treinos no mar.

Dores

É nesta família e no filho Leonardo, de 30 anos, que Peixinho encontra apoio para suportar as dores que carrega - e que muita gente não vê.

Há cinco anos, ela descobriu nove miomas e um nódulo no útero. Nunca fez exames para investigar se o nódulo era (ou é) um tumor cancerígeno e, como se recusa a tomar medicamentos para abrandar as fortes cólicas que afirma sentir, buscou se tratar com cirurgias espirituais.

De um total de 12 sessões, já teve nove encontros com um médium que diz manifestar o espírito do médico alemão Dr. Fritz. "A energia lá é muito forte. Não sei se vai me curar, só sei que saio de lá renovada. E não tenho nenhum medo da morte. Meu único medo é a solidão", entrega.

No dia a dia, a professora ainda lida com a audição restrita, apenas do ouvido esquerdo, pois o tímpano direito estourou há 12 anos, quando uma bomba de pesca explodiu perto dela no mar. Para ver, conta somente com o olho direito, pois um acidente lhe tomou a visão do outro olho há 25 anos.

"Mesmo assim, a visão dela é incrível. Ela conta quantas toucas entram no mar e enxerga a praia toda", diz Katinha.

Sua simplicidade se transporta para seu apartamento, em frente à praia. Não há TV e móveis praticamente inexistem. Ali, a prioridade no espaço é dos cães Teodoro e Boneca.

Reformas feitas no passar dos anos nunca passaram por acabamento. E isso não chega a ser um problema - em cada marca disforme de cimento sem reboco ela consegue ver uma imagem que representa algo marcante em sua trajetória.

A sala exibe um altar sincrético como a Bahia, com orixás unidos a santos católicos e uma bíblia. Junto a este santuário, Peixinho deita-se no chão e faz seus pedidos.

Se não convém revelar os pedidos, seus principais sonhos ela deixa escapar: ganhar uma boa festa de aniversário e realizar, a nado, a travessia de 34 quilômetros do Canal da Mancha, entre França e Inglaterra.