Como o TikTok alimenta a misoginia entre adolescentes brasileiros

Se você assistiu à minissérie "Adolescência", da Netflix, acompanhou a história de Jamie Miller (Owen Cooper), de 13 anos, acusado de assassinar uma colega da escola. O ato extremo tem relação com conteúdos de ódio acessados por ele na internet. A trama reflete uma realidade preocupante: o crescimento de crimes misóginos entre adolescentes.

Misoginia é o termo que define o ódio ou desprezo pelas mulheres. Isso pode aparecer em atitudes como desvalorizar mulheres, tratá-las como inferiores ou justificar violência contra elas. Também costuma estar presente em piadas.

Comportamentos que pareciam antigos têm se tornado frequentes entre jovens. Eles começam a falar sobre "valores femininos" e "valores masculinos", dizem que homens devem ser fortes, líderes, provedores, enquanto mulheres são mais emocionais e cuidadoras. De repente, surgem frases prontas sobre "o papel do homem" e se começa a tratar feminismo como 'mimimi'. Os pais buscam respostas para as falas e atitudes dos filhos e muitas vezes as encontram no celular: no TikTok.

A plataforma é uma das mais populares entre adolescentes e jovens, segundo a pesquisa TIC Kids Online Brasil 2024. Nela, discursos ultrapassados sobre gênero aparecem disfarçados de conselhos sobre masculinidade ou "verdades que ninguém te conta". E o algoritmo aprende rápido: basta assistir a alguns vídeos para o feed ser tomado por esse tipo de conteúdo.

Monitoramento mostra os caminhos do algoritmo

O Núcleo Jornalismo, em parceria com a Revista AzMina, fez um monitoramento inédito durante dois meses no TikTok. Para perceber como as redes sociais influenciam o comportamento dos adolescentes, dois perfis fictícios foram criados na plataforma: o de João, nascido em 2009, e o de Kaio, nascido em 2010.

Inicialmente, os personagens de 14 e 15 anos recebiam vídeos sobre tecnologia e comida. À medida que interagiam com postagens motivacionais e religiosas, passaram a ser expostos a conteúdos de extrema direita, desinformação política e discursos que reforçam estereótipos de gênero.

O objetivo do monitoramento era entender se o feed da plataforma popular entre crianças e adolescentes pode contribuir para a radicalização política, mas a resposta é mais complexa do que parece. Ao contrário do que mostram influenciadores red pills tradicionais, como Andrew Tate (milionário acusado de tráfico humano citado na série "Adolescência"), a misoginia no TikTok começa sutil.

Primeiro os perfis receberam vídeos sobre sonegação de impostos, exaltando figuras como Neymar e promovendo igrejas evangélicas. Depois, apareceram postagens de motivação e autoajuda, seguidas por conteúdos policiais. Até surgirem os vídeos sobre o "valor do homem" e outras ideologias misóginas - que falam mal de mulheres, as querem submissas e pregam o desprezo e até o ódio.

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Dados da SaferNet, organização que atua na defesa dos direitos humanos na internet, confirmam o potencial misógino da plataforma. O TikTok está entre os 10 domínios online mais denunciados no mundo por violência ou discriminação contra mulheres desde 2020, ocupando o primeiro lugar em 2021 e 2022.

Desinformação modela visão de mundo de adolescentes

Tatiana França, professora de Educação Infantil, é mãe de um adolescente de 15 anos. "Ele zapeia o TikTok o tempo todo. Alguns sobre jogo, mas a maioria muita coisa sem sentido, na minha opinião".

Entre a população de 9 a 17 anos no Brasil, 93% acessam a internet e 50% usam o TikTok todos os dias, segundo o levantamento TIC Kids Online Brasil 2024. No grupo de entrevistados de 11 a 17 anos, 22% relataram passar menos tempo com a família, amigos ou fazendo a lição de casa por conta do uso excessivo da internet.

Esse excesso de tempo nas redes alerta para o risco do impacto negativo na construção da identidade dos jovens. O filho de Tatiana, por exemplo, começou a consumir esses conteúdos por volta dos 13 anos. Parte deles tem cunho conservador, principalmente de micro influenciadores de direita.

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A irmã do adolescente, Emily França, de 23 anos, diz que "ele construiu todo seu posicionamento político pelo TikTok". Ela conta que em conversas cotidianas, às vezes, o jovem soltava opiniões radicais sobre política. "Aí eu questionava: 'mas quem te falou isso? Onde você viu essa notícia?', e ele falava: 'eu vi um vídeo no TikTok'".

A misoginia como nicho

'Renato 38tão', nome usado nas redes por Renato Amoedo, perito criminal na Bahia, aparece com frequência no perfil de monitoramento de João, 15 anos, criado para a investigação. O trajeto do algoritmo, que vai da sonegação de impostos até a misoginia, passa por ele. Renato é conhecido por seu apoio ao bitcoin e já viralizou ao afirmar que o fim da Lei Áurea foi um erro.

"Não espero amor de minha mulher. Eu só espero que ela me honre e me obedeça" - é uma das frases virais dele. "A capacidade de uma mulher ser fiel é reduzida a cada homem que toca nela", é outra declaração conhecida de Renato.

Existem também dezenas de perfis dedicados a fazer "cortes de conteúdo" de Amoedo, onde usuários recortam, editam e publicam trechos onde ele apareceu em podcasts ou eventos. Alguns desses seus vídeos no TikTok possuem mais de 3 milhões de visualizações.

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No segundo perfil que criamos, o de Kaio, de 14 anos, foram encontrados principalmente conteúdos de criadores que são ou foram policiais, incluindo o perito Renato Amoedo, mas principalmente posts do policial Diego Corrêa, conhecido como 'SD Corrêa'. O vídeo em que Diego ameaça pessoas foi mostrado ao perfil adolescente, sem qualquer tarja de contexto da plataforma. Ele foi aplaudido nos comentários por usuários nessa publicação, que teve milhares de curtidas.

Comparações entre gêneros

A maioria dos produtores de conteúdo que apareceu para Kaio colocava comparações de gênero, não como misoginia, mas como uma questão de motivação e autoajuda. Por exemplo, muitos vídeos com viés religioso incentivavam meninos a "cultivar a virtude" e "ser um homem de valor" para merecer uma "mulher de valor".

Um outro influenciador com esse perfil, que foi extremamente recomendado ao adolescente fake, é o Super Xandão, nome artístico de Douglas Alexandre. Ele tem milhões de seguidores (no Instagram, YouTube, X e TikTok) e grava conteúdos sobre política, exercícios e comédia, sempre no estilo shit post - expressão utilizado na internet para descrever postagens propositalmente exageradas, sem sentido e de baixa qualidade.

Embora fale muito de política brasileira, os vídeos de Douglas, que foram mostrados ao nosso perfil pelo feed For You, eram, em sua maioria, sobre comportamento e religião. As publicações sempre continham dicas sobre relacionamentos para meninos mais jovens, adolescentes ou jovens adultos.

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Nos posts dessa linha, Super Xandão também falava sobre valor masculino, fazia comparações entre gêneros, e constantemente repetia que homens deveriam aguardar uma mulher certa para casar. Em muitas publicações, ele chamava mulheres com vida sexual ativa de "putas".

Em nenhum momento, o TikTok impediu o acesso a esses conteúdos, que seguiram recomendados na página For You (o feed) para menores de 18 anos.

TikTok também pauta conversas na escola

Keilla Vila Flor, professora de História do Ensino Fundamental e Médio, conta que "toda hora os alunos trazem alguma coisa do TikTok para a sala de aula". A maior parte dos conteúdos mencionados é de trends (tendências) de danças e discursos distorcidos sobre política e economia.

A misoginia é mais presente entre os meninos do fundamental II, na faixa etária dos 11 aos 15 anos, que estão em transição da infância para a adolescência, segundo a professora. Na fase em que o corpo começa a mudar, as meninas se tornam alvos fáceis de comentários pejorativos, especialmente sobre os seios.

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"Com a circulação das redes eu sinto que (a misoginia) se torna pior, porque eles veem que algumas pessoas ganham likes com isso. Então, fazem em sala pra serem aplaudidos pelos colegas", conclui Keilla.

Mãe de uma jovem de 18 anos, a jornalista Karem Moraes lembra de episódios durante o período escolar da filha, quando os colegas tratavam as meninas como 'pedaços de carne', e reverberavam o discurso da mulher pura e para casar.

Por causa das conversas entre mãe e filha desde cedo, a adolescente esteve sempre pronta para rebater certos comentários e comportamentos dos colegas, inclusive nas redes sociais. A filha de Karem mencionou que recebe conteúdos relacionados a valores femininos, cristãos e estilos de vida como tradwife - esposa tradicional -, mesmo após reportar seu desinteresse à plataforma.

Construção de uma masculinidade hostil

Para Denise Neiva, psicóloga especialista em juventude, a exposição a conteúdos ideológicos influencia diretamente o processo de construção da identidade entre adolescentes. Ao ver um mesmo tipo de conteúdo frequentemente, eles tomam aquilo como verdade.

Ela lembra que o cérebro humano só se forma completamente por volta dos 25 anos de idade, quando o lobo frontal, responsável por funções como planejamento, tomada de decisões, comportamento e pensamento crítico, termina de se desenvolver. "As pessoas que falam nos vídeos tomam uma posição de autoridade, mas, na verdade, a maioria deles não tem nenhuma", afirma Denise.

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Muitos chegam à adolescência e juventude com inseguranças, dúvidas de como conquistar uma mulher, se sentem perdidos e ressentidos. É aí que acabam consumindo vídeos em que influenciadores, mesmo sem formação e embasamento, legitimam comportamentos que desrespeitam as mulheres e as colocam em posição de inferioridade.

A falta de debate sobre masculinidades no cotidiano, em casa, na escola e nas relações, acaba sendo preenchida por conteúdos online que reforçam estereótipos. Essa influência na adolescência pode ter consequências a longo prazo, aponta a psicóloga Denise Neiva. Há mais chances de se tornar um adulto que comete microagressões e que violenta psicologicamente, ou fisicamente, as mulheres.

Novas masculinidades

Mesmo que o feminismo lute por um mundo mais justo para as mulheres, a desconstrução do machismo e da misoginia é responsabilidade de quem está no centro do problema: os homens. Segundo Caio César, cientista social e pesquisador de masculinidades, é urgente alcançar os meninos antes que eles sejam capturados por discursos violentos e extremistas.

Caio comenta que há um afastamento sentimental grande dos adolescentes e a internet acaba preenchendo esse espaço. "Esses meninos acreditam que merecem muita coisa que eles não têm, e aí acabam sendo direcionados para um discurso que inflama a raiva, que é basicamente o único sentimento que é permitido aos homens."

Apesar da popularização de grupos para criar novas masculinidades possíveis, como o projeto Memoh e Papo de Homem, o pesquisador aponta que, nos últimos anos, os homens têm retrocedido nesse debate. Um dos motivos é que algumas figuras, antes referências no assunto, passaram a usar a pauta para autopromoção. Outros acabaram envolvidos em extorsão de mulheres e traição.

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O papel das famílias e das escolas

Ter conversas sérias com um adolescente nem sempre é fácil, então Tatiana França e a filha Emily, mãe e irmã de um jovem de 15 anos, usam uma abordagem informal. "A única intervenção da nossa parte foi conscientizar, por meio de bate-papos mais descontraídos, porque qualquer assunto que parece sério demais, ele não curte e acha que é sermão", conta Emily.

Já a professora de história Keilla adota uma postura mais firme quando escuta comentários misóginos em sala de aula. "A minha primeira repreensão é pedir para repetir em frente à turma. O estudante raramente repete", conta. E se não repete, ela ressalta que se ele não tem coragem de dizer algo para todo mundo ouvir, é porque não deveria ter dito a primeira vez.

Denise Neiva, psicóloga da Juventude, sugere conversas partindo de notícias ou acontecimentos reais. Quando um pai, ou uma mãe, mostra que repreende uma conduta misógina em uma situação alheia, pode ajudar a desenvolver o assunto de uma maneira menos tensa sem que o adolescente se sinta atacado.

Monitoramento dos pais é importante

A conversa com os adolescentes tem mais resultados quando está lado a lado com o monitoramento das redes. Várias ferramentas ajudam a controlar o tempo de uso e o tipo de conteúdo acessado pelos meninos.

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É o que faz Rodrigo Cavalcanti, profissional de marketing e pai de um adolescente de 14 anos. Ele monitora o tempo de uso, sites, e as palavras de busca do jovem por meio de controle parental do sistema virtual. "Peço o celular uma vez por mês (sem data pré-definida e sem bloqueios) e vou nos aplicativos ver o que ele tem buscado, preferências, favoritos, históricos, etc."

No entanto, essa nem sempre é a realidade das famílias. Mães solo, por exemplo, que já enfrentam uma rotina sobrecarregada, dificilmente conseguem monitorar o que os filhos consomem online. Além disso, é difícil acompanhar as mudanças tecnológicas no ritmo dos jovens.

Responsabilidade das plataformas

Apesar das proteções declaradas pelo TikTok, como a configuração de perfis privados para menores de 16 anos, o monitoramento realizado pela reportagem revelou falhas nas políticas de segurança da plataforma. Por exemplo, conseguimos remover a configuração de perfil privado sem dificuldades.

A plataforma está sob investigação desde novembro de 2024 pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) pela funcionalidade de feed sem cadastro, que permite aos usuários ver vídeos sem criar um perfil. A ANPD considera que essa função pode colocar em risco a proteção digital de menores de 18 anos.

Embora não tenha evidências de que o algoritmo do TikTok prioriza esses conteúdos, sua simples recomendação viola as diretrizes da plataforma de proteção a crianças e adolescentes.

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Segundo relatórios trimestrais do TikTok, entre julho e setembro de 2024, mais de 5,3 milhões de vídeos foram removidos no Brasil. Destes, 98,8% foram por remoção proativa, ou seja, retirados do ar antes de serem denunciados por usuários, e 89,7% no período de 24 horas após a denúncia.

A plataforma também menciona iniciativas para a segurança digital de jovens, como uma cartilha lançada em parceria com a SaferNet para orientar pais e responsáveis, e recursos como a Sincronização Familiar, que permite o controle parental sobre contas de adolescentes.

Matéria publicada originalmente em AzMina.

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