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'Estarrece', diz ministra sobre caso Mari Ferrer

Mariana Ferrer e André Camargo Aranha - Reprodução/The Intercept
Mariana Ferrer e André Camargo Aranha Imagem: Reprodução/The Intercept

Breno Pires, com Fabio Bispo especial para o Estadão

Brasília e Florianópolis

07/11/2020 10h06Atualizada em 29/12/2020 14h21

Única mulher a integrar o Superior Tribunal Militar (STM), a ministra Maria Elizabeth Rocha afirmou ao Estadão que a influenciadora digital Mariana Ferrer foi vítima de assédio moral e teve seus direitos violados em julgamento do caso em que o empresário André Aranha é acusado de estuprá-la. "O processo de Mariana Ferrer estarrece!", disse a magistrada.

Maria Elizabeth é a primeira mulher de tribunais superiores a comentar o episódio e avaliou como equivocada a atuação do juiz e do promotor. A reportagem procurou também as duas ministras do Supremo Tribunal Federal (STF) e as seis do Superior Tribunal de Justiça (STJ), mas elas não comentaram até a noite desta sexta, 6. Rosa Weber e Cármen Lúcia, do STF, nem sequer responderam ao contato da reportagem.

Maria Elizabeth disse ter lido a sentença e a denúncia. Ela também assistiu ao vídeo da audiência em que a jovem é humilhada pelo advogado Claudio Gastão Filho, que representa o réu. Nas imagens, divulgadas pelo site The Intercept Brasil, o defensor diz a ela: "Jamais teria uma filha do teu nível e também peço a Deus que meu filho não encontre uma mulher que nem você". A íntegra do vídeo mostra que ele foi ríspido com Mariana em outras ocasiões além das já divulgadas. O advogado a chama de "mentirosa" e diz que vai prosseguir sua fala "antes que comece a choradeira".

"(São) Cenas dolorosas de assistir, que mesmo editadas, demonstraram equivocada condução do magistrado que não interveio com a presteza devida e uma flagrante violação aos direitos fundamentais de quem buscava proteção junto ao Poder Judiciário", disse a ministra.

Na sessão, o advogado ainda exibiu fotos sensuais feitas pela jovem antes do episódio, sem relação com o suposto crime. Apesar das intimidações, o juiz Rudson Marcos não intercede. "Excelentíssimo, estou implorando por respeito, nem acusados são tratados do jeito que estou sendo tratada, pelo amor de Deus, gente. O que é isso?", disse ela ao juiz. Aranha foi inocentado por Marcos, que entendeu não haver provas suficientes.

"Causa espanto, também, a postura do Ministério Público que, reforçando regras comportamentais sexistas, em alegações finais pediu a absolvição do réu, desconsiderando os relatos da vítima, de sua mãe, do porteiro e do motorista do Uber; desconsiderando, inclusive, o laudo que atestou o rompimento do hímen com o material genético do estuprador.", avaliou a ministra do STM.

O advogado, para ela, desestabilizou Mariana de modo covarde valendo-se do sigilo do caso. "Aproveitou-se da surdina, para despi-la de sua humanidade, a serviço não da Justiça, mas do modelo patriarcal, androcêntrico e misógino que trata as mulheres como coisas que podem ser violadas física, psicológica, moral, patrimonial e sexualmente. Não anteviu o 'defensor' o vazamento da sua crueldade e a indignação que ela causaria, inclusive entre seus pares."

As condutas do juiz Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, e do promotor do caso, Thiago Carriço, do MP de Santa Catarina, serão alvos de investigação nos conselhos nacionais de Justiça (CNJ) e do Ministério Público (CNMP).

Opressão

Maria Elizabeth disse ainda que o caso reforça a cultura do estupro. "Fica o gosto amargo de ver mulheres vitimizadas que ousaram não se calar virarem rés nos tribunais que descriminalizam condutas criminosas para silenciá-las na desonra. E a cultura do estupro velado e devastador se perpetua, revelando o caráter opressivo de papéis sociais que objetificam e subjugam humanos, impedindo-os/as de viver uma vida digna e livre de violências."

Das ministras de tribunais superiores, Maria Thereza de Assis Moura, do STJ, disse que não se manifestará, pois o caso está em segredo de justiça. A ministra Assusete Magalhães preferiu deixar manifestações sobre o caso para os conselhos competentes. As ministras Laurita Vaz e Isabel Gallotti informaram que não se pronunciarão.

O advogado Gastão Filho disse ao Estadão esta semana que atuou "nos limites profissionais e legais" e, para ele, os trechos da audiência "distorcem o contexto". Sobre o uso de fotos de Mariana como modelo e ter falado em "posições ginecológicas", disse que "dinâmicas entre acusação e defesa abrangem aspectos relacionados a hábitos, perfis, relacionamentos e posturas dos envolvidos".

'Limites de atuação das partes'

Por prerrogativa da função, advogados são imunes às denúncias por injúria e difamação nas manifestações feitas em juízo. No entanto, após audiência do caso da influenciadora digital Mariana Ferrer, que foi atacada pelo advogado Claudio Gastão da Rosa Filho no processo que inocentou o empresário André Aranha Camargo da denúncia por estupro, órgãos de controle e a própria Ordem dos Advogados voltam a discutir o assunto.

Um desses movimentos vem do próprio Ministério Público de Santa Catarina, que enviou ao presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e ao Congresso sugestões de alteração do Código de Processo Penal e do Código Penal, que aumentam a proteção à dignidade da vítima de crimes sexuais e proíbem perguntas e utilização de referências à experiência sexual anterior da vítima, seu modo de ser, falar, vestir ou relacionar-se com outras pessoas.

No pedido, o procurador-geral de Justiça de Santa Catarina, Fernando Comin, aponta que iniciativas semelhantes já foram adotadas em países como Estados Unidos, Austrália, Canadá e Nova Zelândia. Elas apresentam "dispositivos que vedam às partes referências sobre a vida sexual pretérita de vítimas e proíbem o uso de evidências para defini-la como tipo mais ou menos suscetível". Para Comin, o caso de Mariana Ferrer "levantou, uma vez mais, a necessidade de discussão sobre os limites de atuação das partes no processo penal".

A proposta, no entanto, enfrenta resistência da Ordem dos Advogados do Brasil de Santa Catarina, cujo presidente, Rafael Horn, alega que "a legislação atual já impede que o ato processual seja utilizado para revitimizar o direito da vítima".

"Não fomos consultados a respeito, agora a nossa proposta é muito mais eficiente, gravação de todos os atos processuais para permitir o registro de todas as denúncias de violação de prerrogativa e de direito", explicou Horn ao Estadão.

Segundo ele, a denúncia contra a conduta do advogado Gastão já foi oficiada às autoridades e ele passará pelo comitê de ética da Ordem. "Pelo excesso, ele pode ser responsabilizado eticamente. A imunidade não é salvo-conduto para advogado fazer o que bem entende".

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.