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Com pandemia, cai procura por atendimento às mulheres vítimas de violência em SP

Só 42% das 180 vagas estão ocupadas em abrigos municipais dedicados a mulheres que sofreram agressões - Getty Images
Só 42% das 180 vagas estão ocupadas em abrigos municipais dedicados a mulheres que sofreram agressões Imagem: Getty Images

Felipe Resk

São Paulo

27/10/2020 14h01

Foram mais de nove anos de relacionamento, duas traições descobertas, incontáveis xingamentos e ao menos dois episódios de agressão física até que Vanessa (nome fictício) conseguiu encontrar ajuda. Em um dos Centros de Cidadania da Mulher (CCM), na cidade de São Paulo, ela se reconheceu na história de outras vítimas de violência doméstica e recebeu apoio para reconstruir a própria narrativa: "Se eu soubesse que a vida podia ser tão boa, tinha me separado antes."

CCMs, Centros de Referência da Mulher (CRMs) e a Casa da Mulher Brasileira são considerados portas de entrada para acolher vítimas de violência e, se necessário, direcioná-las para outros equipamentos, a exemplo dos abrigos de proteção. Embora tenham permanecido abertos durante a quarentena provocada pela pandemia, quando especialistas previam aumento de crimes contra mulheres, dados da Prefeitura, obtidos pelo Estadão, indicam que menos "Vanessas" acabaram chegando aos serviços municipais neste ano.

Hoje, só 42% das 180 vagas em abrigos municipais estão ocupadas. Com endereços sigilosos, esses locais são preparados para receber mulheres e seus filhos que sofrem agressão, ameaças e estão sob risco de morrer.

Nesses e em outros equipamentos da rede de assistência, são ofertadas para as mulheres uma série de atividades, como oficinas, rodas de conversa, sessões com psicólogos ou ações de independência financeira.

De acordo com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania, o número de atendimentos gerais, que apresentava tendência de alta desde o ano passado, despencou de repente com o isolamento social. Em março, haviam sido 2.685 atendimentos. Em abril, foram 1.002. Mesmo com crescimento gradual nos meses seguintes, o índice chegou a 2.026 em agosto, o dado mais recente, abaixo do patamar do início do ano.

Consequência

Para a secretária municipal Cláudia Carletto, titular da pasta, a queda brusca nos atendimentos seria uma consequência direta da quarentena causada pela pandemia de covid-19. "Esse impacto era um tanto natural, tendo em vista que naquele momento, por causa do distanciamento social, foi pedido para todo mundo ficar em casa."

Cláudia afirma que, no contexto de pandemia, a Prefeitura investiu em alternativas para tentar chegar às vítimas de violência, muitas delas isoladas em casa junto com o agressor. Com o mote #SeguimosPerto, também houve campanha e divulgação de contatos de centros de referência. "A gente tem condições de receber toda mulher que chegar."

Em maio, o prefeito Bruno Covas (PSDB) sancionou lei que autoriza o poder público a pagar leitos de hotéis a vítimas de violência doméstica. Segundo a pasta, 149 mulheres recebem o auxílio da Prefeitura.

Na semana passada, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública divulgou que o País registrou 648 feminicídios no primeiro semestre, ou 1,9% a mais do que no ano passado. Só no Estado de São Paulo foram 88 casos - alta de 3,5%. Entretanto, todos os outros indicadores de violência contra a mulher (lesão corporal, ameaça, estupro) tiveram queda de notificações no Brasil. Para os pesquisadores, o provável é que as vítimas encontraram mais dificuldade para registrar denúncia e receber socorro na pandemia.

"Já ficou claro que o confinamento doméstico aumentou a violência contra as mulheres. Se mesmo assim o número de atendimentos caiu é porque, entre a vítima conseguir fazer a denúncia e ser acolhida, alguma coisa está falhando", afirma a advogada Luiza Nagib Eluf, ex-secretária nacional dos direitos da cidadania do Ministério da Justiça. "Falta a mulher saber que existe o abrigo e que alguém vai buscá-la e protegê-la. Ou o poder público faz o serviço completo ou não adianta."

Recomeço

Vanessa relata que havia acabado de decidir pela separação quando lembrou que havia um CCM perto de casa e decidiu ir lá. Era 2018. "Eu não entendia que era vítima de violência doméstica. Me sentia meio perdida, sozinha e sem autoestima. Fui na esperança de encontrar algum tipo de ajuda, mas nem sabia direito o que estava buscando", diz. "Assim que cheguei, pararam para me ouvir. Não me senti julgada ou constrangida. Já na primeira conversa, muita coisa que estava acontecendo na minha vida foi se esclarecendo."

Ela conta que o então marido havia sido seu primeiro namorado. Tinha 18 anos no início da relação. A pedido dele, Vanessa interrompeu os estudos, e o casal abriu um comércio, onde ela passou a dobrar o expediente com os afazeres domésticos. Nada do que fazia era suficiente. Com o tempo, as reclamações, que eram sutis no começo, viraram gritos e xingamentos. "Ele só parava quando eu começava a chorar."

Vanessa se sentia cada vez mais presa e solitária. Qualquer coisa era motivo de briga. A violência escalonou e ela chegou a ser fisicamente agredida ao menos duas vezes. Passou a sentir medo. "Até o dia que eu decidi ir embora. Minha família e meus amigos me acolheram imediatamente."

Hoje, Vanessa tem uma medida protetiva contra o agressor.