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Afegãs desafiam o Talibã em escolas secretas

Para estudar, mulheres afegãs criam escolas secretas Imagem: WAKIL KOHSAR/ AFP

09/08/2022 10h08

Nafeesa encontrou o local ideal para esconder seus livros didáticos na cozinha, onde os homens raramente entram e os objetos ficam protegidos do olhar recriminador de seu irmão talibã.

"Os garotos não têm nada para fazer na cozinha, assim eu guardo meus livros", explica Nafeesa, de 20 anos, que frequenta uma escola clandestina em seu vilarejo rural no leste do Afeganistão.

"Se meu irmão souber, ele me bate", conta.

Centenas de milhares de meninas, adolescentes e jovens mulheres afegãs como ela foram privadas dos estudos desde o retorno ao poder dos talibãs, há um ano.

O grupo adotou severas restrições às mulheres para impor sua visão fundamentalista do islã.

Elas foram excluídas da maioria dos empregos públicos e não podem fazer longos deslocamentos sem a presença de um parente homem.

Também são obrigadas a cobrir o corpo por inteiro em ambientes públicos, incluindo o rosto, de preferência com a burca, o véu integral com una pequena fresta na altura dos olhos, amplamente utilizada nas regiões mais isoladas e conservadoras do país.

Mesmo antes do retorno dos talibãs ao poder, a grande maioria das afegãs utilizava o véu, mas com um lenço solto.

Para o Talibã, como regra geral, as mulheres não devem sair de casa, exceto em caso de absoluta necessidade.

Mas a privação mais brutal foi o fechamento em março das escolas do Ensino Médio para mulheres em várias regiões, pouco depois da reabertura.

Apesar dos riscos e com a grande vontade de aprender das meninas, os colégios clandestinos proliferaram no país, em muitos casos em quartos das casas de cidadãos comuns.

Jornalistas da AFP visitaram três locais de ensino, conheceram as alunas e professoras, que tiveram os nomes alterados para preservar sua segurança.

- "Queremos ter liberdade" -

Nafeesa tem 20 anos, mas ainda estuda disciplinas do Ensino Médio devido aos atrasos de um sistema educacional afetado por décadas de guerras no país.

Apenas sua mãe e a irmã mais velha sabem que frequenta as aulas. Não o irmão que durante anos lutou com os talibãs nas montanhas contra o antigo governo e as forças estrangeiras, retornado para casa apenas após a vitória dos islamitas em agosto do ano passado.

De manhã, ele permite que a irmã frequente uma madrassa para estudar o Alcorão, mas à tarde, sem que o irmão saiba, ela segue para uma sala de aula clandestina organizada pela Associação de Mulheres Revolucionárias do Afeganistão (RAWA, na sigla em inglês).

"Aceitamos o risco ou ficaríamos sem educação", diz Nafeesa.

"Quero ser médica (...) Queremos ter algo para nós mesmas, queremos ter liberdade, ser úteis à sociedade e construir nosso futuro", disse a jovem.

Quando a AFP visitou sua sala de aula, Nafeesa e as outras nove alunas discutiam a liberdade de expressão com sua professora, sentadas lado a lado sobre um tapete e lendo, uma de cada cez, um livro em voz alta.

Para chegar ao curso, elas saem de casa várias horas antes e fazem caminhos diferentes para não chamar a atenção em uma região dominada pelos pashtuns, um povo de tradição patriarcal e conservadora que é majoritário dentro do movimento talibã.

Se um combatente talibã pergunta para onde estão indo, elas respondem que estão matriculadas em uma aula de costura e escondem os livros didáticos em sacolas de compras ou sob as vestimentas.

Elas correm risco, mas às vezes também optam por sacrifícios, como a irmã de Nafeesa, que abandonou a escola para evitar qualquer suspeita do irmão.

- Sem justificativa religiosa -

De acordo com os eruditos religiosos, nada no islã justifica proibir o ensino às mulheres. Um ano depois de sua chegada ao poder, o Talibã insiste que permitirá a retomada das aulas, mas sem divulgar um calendário.

O tema divide o movimento. De acordo com várias fontes entrevistadas pela AFP, uma facção radical que aconselha o líder supremo, Hibatullah Akhundzada, se opõe aos estudos femininos ou deseja limitar os mesmos ao ensino religioso e aulas práticas de cozinha ou costura.

Desde o início, os talibãs justificam a interrupção do Ensino Médio a uma questão "técnica" e garantem que as meninas retornarão às aulas após a criação de um programa educativo baseado nas regras islâmicas.

Ao mesmo tempo, as meninas podem frequentar o Ensino Fundamental e as jovens podem frequentar as universidades, mas em turmas segregadas por sexo.

Mas sem o diploma do Ensino Médio, as adolescentes não poderão entrar na universidade. As mulheres que estão atualmente no Ensino Superior podem ser as últimas no país em um futuro próximo

- "Geração sacrificada" -

Para o pesquisador Abdul Bari Madani, "a educação é um direito inalienável no islã, tanto para os homens como para as mulheres".

"Se esta proibição continuar, o Afeganistão voltará ao período medieval. Uma geração inteira de meninas será sacrificada", completa.

O medo de perder uma geração foi o que motivou a professora Tamkin a transformar sua casa de Cabul em uma escola.

A afegã de 40 anos se recusou a abandonar a escola no período em que o Talibã governou o país pela primeira vez (1996 a 2001) e proibiu a escolarização de todas as mulheres.

Ela levou anos para se formar por conta própria e virar professora. Tamkim ficou sem trabalho no ministério da Educação, depois que o Talibã retomou o poder em agosto do ano passado e mandou para casa todas as mulheres com emprego público.

"Eu não queria que essas garotas fossem como eu", disse Tamkin à AFP com lágrimas nos olhos. "Devem ter um futuro melhor", suplica.

Com o apoio do marido, ela transformou uma despensa em uma sala de aula. Depois vendeu uma vaca da família para comprar livros escolares, porque a maioria de suas alunas vem de famílias pobres e não podem comprar o material.

Ela dá aulas de inglês e ciências para 25 alunas empolgadas.

Recentemente, em um dia chuvoso em Cabul, as jovens participaram em uma aula de Biologia.

"Eu quero apenas aprender. Pouco importa o aspecto do local de estudo", disse Narwan, sentada ao lado de colegas de várias idades e que, em tese, deveria estar no fim do Ensino Médio.

Atrás dela, um cartaz pendurado na parede estimula as estudantes a serem gentis: "A língua não tem ossos, mas é tão forte que pode quebrar seu coração, então tenha cuidado com suas palavras".

A bondade dos vizinhos permitiu a Tamkin dissimular o novo objetivo de sua despensa. "Os talibãs perguntaram várias vezes: 'O que existe aqui?' Pedi aos vizinhos que falassem que era uma madrassa", explica.

Maliha, aluna de 17 anos, está convencida de que algum dia os talibãs não estarão no poder. "Então, faremos bom uso do nosso conhecimento", afirma.

- "Não temos medo" -

Na periferia de Cabuk, em um labirinto de casas de barro, Laila comanda outra aula clandestina.

Quando viu o rosto de sua filha depois do repentino cancelamento do Ensino Médio em março, ela entendeu que precisava fazer algo.

"Se minha filha chorou, então as filhas dos outros também deveriam estar chorando", recorda a professora de 38 anos.

Dez meninas se encontram dois dias por semana na casa de Laila, que tem um quintal e uma horta onde ela cultiva verduras.

Na sala, uma grande janela tem vista para o jardim. As alunas, cujos livros e cadernos têm um plástico azul, estão sentadas em um tapete, brincalhonas e estudiosas. A aula começa com a correção do dever de casa.

"Não temos medo dos talibãs", afirma Kawsar, de 18 anos. "Independente do que falem, vamos lutar, mas vamos continuar estudando", acrescenta.

Estudar não é o único objetivo de algumas meninas e mulheres afegãs, várias delas casadas em relacionamentos abusivos ou restritivos. Algumas buscam um pouco de liberdade.

Zahra, que frequenta a escola clandestina em um vilarejo rural do leste do Afeganistão, se casou aos 14 anos e vive atualmente com os sogros, que não aceitam a ideia de que frequente aulas.

Ela precisa tomar soníferos para lutar contra a ansiedade e teme que a família de seu marido a obrigue a permanecer em casa.

"Eu digo a eles que vou ao bazar local e venho para cá", explica Zahra na escola, o único local que tem para fazer amigas.

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© Agence France-Presse

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