A promessa parecia simples: usar a IA para libertar a gente das tarefas chatas e repetitivas a fim de sobrar mais tempo para o que nos faz humanos. E o que está acontecendo? Estamos recrutando chats e bots e afins para nos "salvar" nas áreas e funções que mais pedem escuta, mediação, curadoria e cuidado. Sim, a lembrança do filme Ela, de Spike Jonze, é inevitável e já vimos muito por aí —justamente porque, como os números comprovam, o pessoal anda se apaixonando pelos robôs. Aliás, bem mais que isso. A Harvard Business School refez, este ano, um estudo de 2024 sobre os dez maiores usos de inteligência artificial generativa (essa "tipo" ChatGPT, que conversa com a gente). Sabe qual é o uso número um? Terapia/companhia. Número um! Com mais acesso da população, em aplicativos mais fáceis e baratos, a constatação é que, em relação ao ano passado, em todas as áreas, os usos, digamos, "técnicos", estão perdendo espaço para os usos pessoais. O segundo, "para organizar minha vida", e o terceiro lugar, "buscar propósito", sequer apareceram no estudo de 2024.
Chatbots são mais usados para ajudar a escrever e-mails amorosos, analisar conversas com o crush e pedir conselhos do que, sei lá, para a tradução de textos em idiomas complexos. É prático, rápido, disponível 24/7 e, quase sempre, gratuito. No ambiente de trabalho, veja só, a IA tem cada vez mais poder de decisão numa área que, num passado jurássico, era chamada de "recursos humanos": triagem de currículos, convites de entrevista, conversas iniciais. Quase metade das empresas nos EUA já automatiza etapas do recrutamento, e a adoção de GenAI em RH saltou de 19% para 61% em apenas dois anos. Tem mais. Redações de feedbacks e avaliações, avaliações, comunicação de demissões e tomadas de decisões sobre promoções, reajustes e cortes? Na mão da IA. Mas esses não seriam terrenos que deveriam abrir debates legais, éticos e morais? Os candidatos também não perdem tempo: a IA aparece como uma prática recorrente para quem busca empregos. Dados de diferentes amostras no Reino Unido apontam que algo entre 45% e 50% das pessoas usa IA para escrever currículos, cartas e respostas durante processos de recrutamento. O efeito colateral? Textos padronizados, absolutamente genéricos, e o aumento assustador do volume de aplicações, o que empurra empresas a automatizar ainda mais a triagem, uma bola de neve que amplifica a necessidade de recursos absolutamente nada humanos. Quem mais perde espaço são os que ainda não conseguiram construir repertório: os jovens. Em áreas expostas à automação de linguagem, como contabilidade, programação e atendimento, as vagas de entrada encolheram em torno de 13% em três anos, enquanto níveis mais experientes se mantiveram. O risco não é só desemprego juvenil; é um colapso de aprendizagem. É o risco de perder o treino humano do início de carreira: observar, errar pequeno, ajustar, insistir. Aquele básico: ninguém chega sabendo. Como essa turma vai ser preparada para já chegar nas empresas em cargos mais altos, se é que isso é possível. Não é caso de nostalgia nem de pânico, e sim de sabermos exatamente onde estamos pisando e fazermos escolhas conscientes. A IA inegavelmente reduz etapas, economiza tempo. Mas também achata nuances humanas, tira nossa identidade e, mais grave de tudo, faz derreter o cérebro de heavy users. Por isso, o limite talvez não esteja no que a tecnologia consegue fazer, e sim no que decidimos delegar para que ela faça. (colaborou: Bruna Borelli) |