Aborto e Religião

Conheça os fiéis que defendem o direito da mulher interromper uma gravidez no Brasil

Amanda Serra Da Universa
Priscila Barbosa/Universa

Todo tipo de mulher faz aborto: mães, solteiras, casadas, ricas, pobres, religiosas ou não. Em 2015, 1.300 mulheres por dia -- quase uma por minuto -- arriscaram a vida para interromper uma gestação ilegalmente no Brasil. Dessas, 56% eram católicas e 25% evangélicas ou protestantes. Os dados são da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) da ONG Anis - Instituto de Bioética.

O fato é que nem a criminalização nem a culpa impedem a mulher que quer abortar. Dados do Ministério da Saúde, no entanto, mostram que, a cada dois dias, uma brasileira pobre morre vítima do aborto inseguro. É ele a quinta causa de morte materna no país.

Diante do debate sobre se a vida começa na concepção ou no nascimento, se abortar é pecado ou não e do número crescente de mortes, o Supremo Tribunal Federal (STF) inicia, nesta sexta-feira (3), uma audiência pública em Brasília que se estenderá até 6 de agosto. A ideia é escutar entidades pró e contra a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. 

Universa ouviu alguns porta-vozes de diferentes religiões do Brasil que participarão do evento, além de especialistas das áreas penal, social, médica e teológica, que dizem que o debate vai além do campo espiritual - apesar de, muitas vezes, a religião ser usada para impedir que a mulher tenha o direito de interromper uma gestação de maneira segura.

Veja a seguir o que pensam representantes de grupos budistas, islâmicos, judeus, católicos, evangélicos, espíritas e umbandistas que defendem o direito ao aborto.

O que representantes de 7 grupos religiosos pensam sobre o aborto

Ela crê em Deus e no direito ao aborto

Maria José Rosado, 73, é doutora em ciência social, professora de Ciência da Religião da PUC-SP e uma das fundadoras da ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Rosado diz que atua no evangelismo além do “cristianismo patriarcal”. Ela participará da audiência no STF, no dia 6, em defesa da autonomia feminina na tomada de decisões e da importância do Estado em garantir assistência para que mulheres não morram por causa de um aborto clandestino inseguro.

“O aborto nunca foi dogma para Igreja Católica. Não é um pecado”, fala a professora. "Um elemento da fé católica só é considerado um dogma quando é proclamado pelo Papa como uma verdade infalível e não há possibilidade para os fiéis discutirem a questão. E isso nunca aconteceu em relação ao aborto.”

O padre Júlio Renato Lancellotti, da Pastoral de Rua de São Paulo, confirma a informação, mas discorda de que aborto não seja pecado. “Não existe um dogma específico, mas o aborto se encaixa no mandamento ‘não matarás’, portanto, sempre foi considerado um pecado e condenado na Igreja. O perdão só é concedido se a pessoa, de fato, mostrar claro e profundo arrependimento, dizer que nunca mais o fará e garantir o compromisso de defesa da vida.”

Em 2015, no Jubileu da Misericórdia, o papa Francisco autorizou o perdão da igreja católica às mulheres que abortaram. Até então, ele só podia ser concedido por bispos e não por padres.

Por que a mesma sociedade que condena as mulheres que abortam não dá a elas condição de criar essas crianças depois?

Maria José

Maria José, fundadora da ONG Católicas pelo Direito de Decidir

"Nada nos separa do amor de Deus"

A interrupção de gravidezes indesejadas por questões econômicas, emocionais e mentais é um tema recorrente na trajetória da missionária Nancy Cardoso, 60, pastora metodista que trabalha com mulheres das comunidades rurais em Rondônia. E dá para ser cristã e ser a favor do aborto? Ela garante que sim, pois acredita que o evangelho é a liberdade de escolha e o acolhimento. "Minha primeira atitude, diante dos casos que chegam, é mostrar que nada nos separa do amor de Deus”, diz.

“Tento garantir o direito da mulher decidir, mas confesso que é complicado em um país que não garante essa escolha e mostra como única opção espaços clandestinos e, muitas vezes, inseguros”, diz ela.

Segundo a pastora, a ideia de que fazer um aborto traz remorso nem sempre é verdade, mas é algo pregado por instituições religiosas – ainda com forte presença masculina – para que mulheres sejam intimidadas a não terem independência.

Ela também explica que esse mecanismo do pecado é uma ferramenta da igreja patriarcal e vai contra o princípio pregado por Jesus, que nasceu em uma mesa de iguais e propagava a liberdade e a autonomia. "Se a igreja cristã abre mão disso, e se coloca como ‘Estado-igreja’, criamos uma comunidade de opressão dos corpos", afirma Nancy.

Maria, por exemplo, foi consultada sobre a gestação de Jesus e disse: 'Sim, agora eu quero'

Nancy Cardoso

Nancy Cardoso, pastora metodista

Por que o aborto é proibido no Brasil?

O controle dos corpos e a sexualidade por meio da religião não é uma novidade do mundo contemporâneo, tampouco a penalização que utiliza a culpa como ferramenta de condenação. Durante todo o período colonial e imperial brasileiro não houve separação entre Estado e Igreja Católica. O papa era uma espécie de chefe de Estado - e as leis se baseavam nas normas ditadas pelo catolicismo. “A cristandade sempre foi chamada para opinar. No Brasil, a assistência social sempre foi moeda de troca entre os poderes: Estado e comunidade cristã. E isso pesa para nós até hoje, porque a igreja acha que é garantidora da moral. São trocas de poderes antigos e ruins", diz Nancy.

Ainda assim, quando o primeiro Código Penal brasileiro foi criado, em 1830, o aborto era considerado crime apenas para a pessoa ou o médico que realizasse o procedimento.

“Não havia punição para a mulher que praticasse o aborto, pois havia a compreensão de que o ato já representava uma pena para a mulher, por conta do sofrimento imposto. Mas quem ajudava devia ser punido até por causa do lucro envolvido, em alguns casos”, explica a doutora em direito penal Patrícia Vanzolini, professora do Mackenzie e autora da dissertação “Descriminalização do Aborto - Uma Perspectiva Constitucional”.

No entanto, a mulher também passou a ser punida criminalmente a partir de 1890. A última versão do Código Penal, de 1940, e que vale até hoje, diz que o abortamento só é permitido em três casos: estupro, risco à vida da gestante e quando o feto é anencéfalo (este por decisão do STF, de 2012). O Brasil é um dos países com legislações mais restritiva ao aborto no mundo e a pena para mulher que for pega abortando, nos casos não previstos em lei, é de até três anos de detenção.

Atualmente, tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado cerca de dez projetos conduzidos pela Frente Parlamentar Evangélica do Congresso Nacional, e a maioria tem como objetivo retirar direitos já garantidos por lei, além de proibir o acesso à 'pílula do dia seguinte'. Veja detalhes 

A legislação que proíbe o aborto não o impede de acontecer. Ela só mata mulheres pobres, negras. As ricas abortam em segurança. É uma lei extremamente cruel que não protege nada

Patrícia Vanzolli

Patrícia Vanzolli, especialista em direito penal

E o que diz a Bíblia?

Para a pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil e doutoranda em direito, Lusmarina Campos Garcia, 54, o papel da Igreja tem de ser de amparo e perdão, pois muitas mulheres se sentem confortadas somente nesses espaços. “É a essência do cristianismo e de Deus: o amor. Tanto que o mandamento principal é 'amai a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo'.” Lusmarina também falará no STF no dia 6.

Segundo a pastora luterana, há três textos na Bíblia que falam sobre aborto sem criminalizá-lo ou questionarem a concepção da vida. A teóloga preparou sua argumentação no STF com base neles: dois do Antigo Testamento – Êxodo, capítulo 21, versículos 22 e 23 e Números, capítulo cinco, versículos 11 a 31 – e o terceiro encontra-se no Novo Testamento – 1º Coríntios, capítulo 15, versículos oito e nove. Clique aqui para ler os textos sagrados cristãos em sua íntegra e, a seguir, a interpretação da pastora:

A interpretação de Lusmarina

Se uma mulher fosse agredida por um homem durante uma briga e por conta disso perdesse o filho, o agressor deveria pagar uma multa ao marido dela e não com sua morte, por ter provocado o aborto -- como na época valia a lei de talião: "dente por dente, olho por olho". Isso mostra que a vida não começa na concepção, mas somente no nascimento

sobre Êxodo, capítulo 21, versículos 22 e 23

Em 1º Coríntios, capítulo 15, versículos oito e nove, o apóstolo Paulo refere-se de maneira metafórica a si mesmo como um aborto: 'E por derradeiro de todos me apareceu também a mim como a um abortivo. Pois sou o menor dos apóstolos e nem sequer mereço ser chamado apóstolo, porque persegui a igreja de Deus'.

sobre 1º Coríntios, capítulo 15, versículos 8 e 9

Se o marido desconfiasse da infidelidade da mulher, ele poderia submetê-la ao ritual da ordália (sentença divina) que consistia em obrigar a mulher a tomar água com restos de animais. Se ela abortasse, estava comprovada a infidelidade, podendo ser punida com a morte por apedrejamento. Se apenas passasse mal, não era considerado traição.

sobre Números, capítulo cinco, versículos 11 a 31

“Com isso, vemos que o aborto não é condenado no texto bíblico, porque nem considerado pecado ou crime era”, diz Lusmarina, que questiona o fato do capítulo 20:13 de Êxodo -- “...Não matarás. Aquele que matar terá de responder ao tribunal...” -- ganhar grande amplitude no discurso das pessoas que se posicionam contrárias à legalização e à descriminalização do aborto, alegando que mulheres seriam assassinas.

“É preciso entender o contexto histórico atribuído, já que o mandamento não tinha um caráter universal e não abrangia os inimigos de Israel ou as mulheres consideradas adúlteras. Várias pessoas não estavam incluídas na lei do 'não matarás'. Não dá para pegar um texto bíblico antigo e transportá-lo para o presente, fora do seu contexto, sem fazer nenhum trabalho histórico, de interpretação de textos religiosos. É uma regra fundamental. Quando isso ocorre, há uma manipulação para servir a um propósito”, afirma.

A teóloga explica que, na Bíblia, é possível encontrar textos com ambas as perspectivas, inclusive, sobre a criação de Adão e Eva. “Atualmente, o que temos é uma igreja que criminaliza mulheres, pois continua repetindo essas interpretações que a colocam em situação desigual em relação aos homens e tira dela a capacidade de tomar decisões acerca de sua própria vida, do seu próprio corpo, da sua família e do seu futuro”, diz a pastora, que tem a consciência tranquila sobre sua atuação pastoral quando confrontada com o dilema em seu dia a dia. 

Planejamento familiar, uma discussão pouco debatida

Para Ana Flávia D'Oliveira, médica sanitarista e professora da Faculdade de Medicina da USP, o aborto é a ponta do iceberg em uma discussão sobre reprodução, gravidez indesejada – assunto comum, mas pouco explorado no âmbito social e da saúde –, orientação sobre contracepção, questões econômicas e liberdade sexual feminina.

“Há carências de métodos contraceptivos. As mulheres não são orientadas sobre quais são os mais indicados para cada uma delas – algumas não podem consumir hormônios, outras não podem colocar DIU de cobre (modelo oferecido pelo SUS). E, por mais que se usem todos eles, haverá falha. Sem contar que há médicos de família que não oferecem contracepção por conta de princípios religiosos”, afirma a médica

A propagação e a crença de que ser mãe é uma “bênção de Deus” deixa de lado dados que mostram que 55,4% das gestações no Brasil não são planejadas. De acordo com uma pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) de 2016, o número é mais alto do que a porcentagem média encontrada no mundo -- as Nações Unidas dizem que 85 milhões de gestações foram indesejadas, ou seja, 40% do total.

Há mais de 20 anos trabalhando com o tema aborto, Flávia Motta de Mattos, professora da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) e conselheira titular no Conselho Estadual de Direitos Da Mulher (CEDIM-SC), acredita que a problemática vai além do debate de saúde pública.

“É uma forma de violência contra a mulher e seu aspecto violento se revela nas consequências sobre a vida e o corpo da mulher. Estando criminalizado o aborto no Brasil, a mulher é obrigada a recorrer a métodos clandestinos, duvidosos, com sofrimentos emocionais, físicos e consequências drásticas para sua saúde. 

Num país supostamente laico, códigos morais de base religiosa orientam ações no campo da Saúde, Justiça e Legislação

Flávia Motta de Mattos, do Conselho de Direitos da Mulher (SC)

A coisa mais absurda e violenta é dizer a uma mulher: 'Tenha a criança e depois dê'. Como se ter uma criança fosse algo simples, como se a mulher fosse um animal reprodutor. O que é isso? Respeitem as mulheres!

Maria José

Maria José, socióloga e fundadora do Católicas pelo Direito de Decidir

Estado laico e seu significado

Em um Estado laico -- que tem como regra a separação do Estado e da igreja --, como se define o Brasil, a advogada Patrícia Vanzolini chama a atenção para o fato de alguns temas terem ganhado a adesão da bancada religiosa na Câmara e no Senado em detrimento de outros.

A religião tem influenciado muito em pautas específicas, mas não vemos isso acontecendo com temas ligados à Reforma Agrária, por exemplo. E poderia, já que uma pessoa propriamente franciscana ou jesuíta deveria dizer que, em nome da religião, tem de distribuir renda, não pode ter fazenda improdutiva. Mas a gente não vê essas pautas serem abraçadas

Há 21 anos com atuação no direito penal brasileiro, a advogada diz que as taxas de aborto diminuíram em todos os países em que a prática foi descriminalizada, assim como a morte das mulheres em decorrência da interrupção, algo reforçado também por o estudo "Uneven Progress And Unequal Access" do Instituto Guttmacher, organização norte-americana de saúde e direitos reprodutivos que reuniu dados de todo o mundo para essa constatação. A exemplo do Uruguai, que legalizou o aborto em 2012 e, segundo estudo da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 2015, o país tem a menor taxa de mortalidade de gestantes da América Latina.

"Honestamente, nenhuma mulher vai deixar de abortar porque será punida. Entre ter um filho para sempre, que ela não quer, não pode ter, e arcar com uma pena passageira, ela optará pela última", afirma a especialista em direito penal.

A antropóloga e responsável pela ação Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 encaminhada ao STF, Débora Diniz, compartilha da mesma opinião. “A resposta fundamentada na criminalização e repressão tem se mostrado não apenas inefetiva, mas nociva. Não reduz nem cuida. Impede que mulheres busquem o acompanhamento e a informação de saúde necessárias para que seja realizado de forma segura ou para planejar sua vida reprodutiva a fim de evitar um segundo evento desse tipo”, diz no texto da PNA.

Para advogada, se a religião tem como regra tão clara defender a vida, ela deveria estar aberta a entender quais são as formas mais efetivas de fazer isso, que não é desamparando a mulher ou punindo-a quando opta por um aborto. 

Não é uma disputa entre Deus e o diabo, entre vida e a morte. Se o objetivo é diminuir o aborto, é preciso pensar que, para alcançá-lo, devemos oferecer educação, aconselhamento e amparo financeiro. Isso, sim, é absolutamente coerente com a religião que prega amor e solidariedade

Patrícia Vanzolini

Patrícia Vanzolini, especialista em Direito Penal

Curtiu? Compartilhe.

Topo