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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Adivinha quem vai criar os filhos dos pais que não têm tempo para nada?

Regina Casé e Michel Joelsas em cena de "Que Horas Ela Volta?": filmes e livres mostram nossa realidade - Reprodução/Pandora Filmes
Regina Casé e Michel Joelsas em cena de "Que Horas Ela Volta?": filmes e livres mostram nossa realidade Imagem: Reprodução/Pandora Filmes

Tatiana Vasconcellos

Colunista do UOL

20/05/2022 04h00

"Se não tem tempo para conceber, como terão tempo para criar os filhos?". Foi o que mais li em reação ao texto da última semana. Ele se baseia em uma declaração de um médico inglês, especialista em reprodução assistida, segundo quem casais heterossexuais têm escolhido pagar tratamentos de fertilização in vitro alegando falta de tempo para transar. Querem ter filhos, mas não têm tempo para concebê-los. Adivinha quem vai criar esses filhos? Aposto que é a dona Eunice.

Dona Eunice é uma das personagens do romance mais recente de Eliana Alves Cruz, "Solitária" (ed. Companhia das Letras). Eunice mora no quartinho de empregada de um apartamento em andar alto de um desses prédios com nomes em inglês. Ela cuida de Mabel, a filha que vive com ela no trabalho, mas também de Camila, a filha de dona Lúcia e de seu Tiago. Adivinha quem sabe cozinhar o prato preferido de Camila?

Essa história te parece familiar?

Dona Eunice e Mabel me lembram Val e Jéssica, do filme "Que Horas ela Volta?". Ambas as duplas de mãe e filha simbolizam uma quebra de padrão determinante na história das mulheres da família.

Mabel, assim como Jéssica, será a primeira geração daquela família a cursar uma faculdade e, assim, enxergar um horizonte que lhe permita sonhar uma vida diferente da que a mãe teve, a partir de oportunidades e da possibilidade de fazer escolhas. "Pessoas como nós precisam calcular tudo com precisão ou a vida pode complicar para sempre. E eu me revoltava porque não achava isso justo", diz Mabel, a menina que, ao contrário da mãe, não queria ter filhos. "Acho que às vezes a gente está numa situação ruim, mas se acostuma com ela e não quer sair porque é ruim, mas é conhecido.", diz Dona Eunice, que "é quase da família", como dizem dona Lúcia e seu Tiago.

Dona Lúcia e seu Tiago certamente frequentariam a turma retratada por Clara Drummond em outro livro recém-lançado, "Os Coadjuvantes" (ed. Companhia das Letras). Emendei uma leitura na outra, foi chocante. Ambos os livros trazem o contraste de classes, cada história contada de um ponto da pirâmide social. Clara conta a história de Vivian em um grupo da elite econômica e cultural brasileira, que, segundo ela, tem uma autoimagem absolutamente distorcida de si. "Acham que são sofisticados, algo como Fernando Henrique Cardoso, mas estão mais próximos do Vivendas da Barra". Clara enxerga de dentro, com lentes ácidas, esse ambiente de relações convenientemente utilitárias permeadas por códigos misteriosos.

"É nessa economia acumulada que o capital simbólico se materializa no mundo físico."

Em contraste com esse mundo —e para lembrá-lo de todo o resto— está Darlene, a vendedora do carrinho de bebidas que trabalha em frente ao prédio de Vivian, boa de conversa, com quem os amigos mantém uma relação falsamente íntima "sem parecer condescendente". "Darlene é quase da turma", diriam dona Lúcia e seu Tiago. A frase é sabidamente reveladora de uma culpa burguesa que dissimula os espaços distintos tacitamente delimitados de cada um.

"Não passou pela cabeça de nenhum de nós que os ambulantes poderiam estar naquele espaço como frequentadores. Em tese, era uma festa gratuita, e não havia motivo para que ficassem de fora [...] Mas havia um entendimento mútuo, silencioso e unânime de que eles não pertenciam àquele ambiente, e isso era tudo."

Vivian reflete sobre uma vida de aparências em que se sente forçada a cumprir o roteiro do que esperam dela. Isso significa mentir, esconder uma doença, deixar para lá um ato violento em nome da manutenção da estrutura patriarcal. Se uma mulher ganha mais do que o marido, ou se o companheiro fica desempregado, não é de bom tom que isso seja sabido pela família ou pelos amigos, não é isso que se espera de um casal, a virilidade e o poder masculinos podem ser abalados. Sexo não só é repreendido como punido. Não há espaço para emoções, não há espaço para deleites nem prazeres na dinâmica do que eles chamam eufemisticamente de "classe média".

"É toda uma existência tentando agradar um grupo de pessoas incapazes de gerar qualquer afeto que não seja atravessado por dinheiro e poder".

Obviamente no roteiro de como viver consta o item "filhos", é o que se espera de um casal heterossexual —dos que desejam, dos que sabem que não querem e dos que nunca se perguntaram se querem ser pais. Mesmo daqueles que não têm tempo nem para a concepção, é esperado que se reproduzam. Adivinha quem vai criar esses filhos?

Para ler:

"Solitária", de Eliana Alves Cruz
"Os Coadjuvantes", Clara Drummod