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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Estou sem tempo, vou comprar um filho

"As pessoas estão ocupadas trabalhando, ganhando dinheiro. É a mercantilização de todas as nossas relações, inclusive sexuais" - Getty Images/iStockphoto
"As pessoas estão ocupadas trabalhando, ganhando dinheiro. É a mercantilização de todas as nossas relações, inclusive sexuais" Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

13/05/2022 04h00

Um médico inglês disse recentemente que casais heterossexuais têm preferido pagar por tratamento de fertilização in vitro a dedicar tempo para conceber uma criança. Preferido. Escolhido pagar. É ou não é o puro suco do capitalismo? "Não tenho tempo, mas tenho dinheiro, vou mandar fazer esse filho aí". Provavelmente sem considerar que a fertilização in vitro é um tratamento que exige bem mais do que um montante financeiro relevante. Exige uma grande disposição emocional, porque é cheio de altos e baixos, expectativas e frustrações. Não é um caminho exatamente fácil.

Mas talvez seja bobo falar em emoções nesse caso. A sociedade do desempenho e da produção não deixa espaço para os afetos. Deturpa as conexões, predominam as relações utilitárias. O negócio é produzir, trabalhar desesperadamente e ostentar, se possível. Nada é determinado por afeto. Nem a concepção de uma criança.

As pessoas estão ocupadas trabalhando, ganhando dinheiro, vivendo vidas sociais baseadas em interesses. É a mercantilização de todas as nossas relações, inclusive as sexuais. Se bem que relações sexuais utilitárias não são exatamente uma novidade. Mas para fins reprodutivos?

Claro que a base não é científica, é a percepção de dois especialistas em fertilização externada durante uma palestra em Londres. Ainda assim, considerei interessante para fins de conversa. Se casais heterossexuais não encontram tempo para transar e planejar um bebê, mesmo desejando um bebê, estão investindo em quê, minha gente? O que estão fazendo da vida?

Ao ouvir o neurocientista Sidarta Ribeiro falar em "insônia do mundo", tudo parece fazer sentido. Quanto mais produtivos—e temos produzido cada vez mais—, menos tempo dormimos. Quanto menor o período dormido, menos REM (fase do sono de descanso profundo) , menos sonhos e, por associação, que ele explica, mais prejuízos cognitivos e emocionais. Dormir pouco interfere inclusive na nossa capacidade de reter informação e formar memórias. A solidão cresce, a ansiedade aumenta e esse estado individual vai contaminando as relações e esgarçando o tecido social. Libido? Quê?

Das agulhadas do mal-estar contemporâneo, de cuja origem mal temos consciência, queremos nos livrar por milagre. Encarar o incômodo exige disposição, mas quem está disposto? Longos períodos de terapia, sofrimento com descobertas bastante desagradáveis de si e dos outros, angústia. Passa para cá essas gotinhas não receitadas por nenhuma profissional da medicina. Dopados e readequados, seguimos produzindo, trabalhando desesperadamente e ostentando, se possível.

Um dos médicos que falou ao "Daily Mail" sobre fertilização disse que as pessoas hoje têm metade da frequência sexual de 30 anos atrás. Pesquisadores no mundo todo estudam a relação dos jovens da geração Z —esses na faixa dos 20 e poucos anos— com o sexo e as conclusões são muito parecidas: ninguém mais transa. Estão todos ocupados com outro tipo de desempenho.

É um jeito de funcionar, uma maneira de estar no mundo. Que sabor tem? De streaming?

Os especialistas consideram, mesmo, que os serviços de streaming possam estar colaborando na ruína da vida sexual dos casais. Afinal, depois de um dia estressante de trabalho e produção, nada melhor para relaxar do que uma tela bem hipnotizante. Filho? Na volta a gente compra.


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