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Tatiana Vasconcellos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O orgasmo está mais democrático ou estamos sendo pressionadas a gozar mais?

Segundo Mariana Stock, fundadora do perfil Prazer Ela, o orgasmo só é vivido plenamente quando não há pressão - iStock
Segundo Mariana Stock, fundadora do perfil Prazer Ela, o orgasmo só é vivido plenamente quando não há pressão Imagem: iStock

Colunista do UOL

18/03/2022 12h17

Desde o fenômeno empoderado Maria declarando saudade de seu vibrador em meio a sentidas lágrimas no maior reality show do país, venho pensando na nossa relação com o sexo e a sexualidade. Ela é resultado dos entedimentos que aprendemos do que é sexo, sexualidade e dinâmicas das relações heterossexuais. Daqui até declarar a dezenas de câmeras assistidas por todo o Brasil que está com saudade de uma siririca caprichada tem um longo caminho. Emocional, inclusive. E até essa distância pode acabar significando coação.

Tendemos a lidar melhor com algum tema quanto mais falamos dele. Mas também é verdade que, quanto mais gente falando sobre um assunto, maior a chance de banalizá-lo ou esvaziá-lo de sentido. Estamos falando mais sobre sexo? Estamos praticando mais sexo? Sabemos o que nos dá prazer? Falar sobre orgasmo está na moda? Bati na porta da Mariana Stock, comunicadora, psicanalista, terapeuta orgástica e fundadora do Prazerela, que tem uma abordagem sobre sexualidade que me interessa. Talvez te faça sentido também. Vem comigo.

UNIVERSA - O orgasmo tem sido mais democrático? Tem mais mulher gozando?
Mariana Stock -
Se a vivência do orgasmo está mais democrática a gente não tem como saber, mas que a discussão sobre o orgasmo está mais democrática, disso não há dúvidas, esse tema está na pauta. O que tem, obviamente, muitas coisas incríveis, como o fato de as mulheres estarem se autorizando, pelo menos, a falar sobre o assunto. Para vivenciar o orgasmo, poder elaborar traumas, medos, questões é fundamental. E só se pode elaborar quando há uma autorização para falar sobre eles. Por outro lado, o fato de esse assunto estar em alta faz com que o capitalismo se aproprie da pauta e que ela vire mais uma demanda para a mulher. Se está todo mundo falando disso, se todo mundo tem, eu tenho que ter também. Se não, não estou à altura dessas mulheres que têm essa vivência.

Quais as dificuldades das mulheres com o orgasmo?
A dificuldade das mulheres com o orgasmo é ancestral. Não dá pra dizer que o legado de nossas mães, avós, bisavós não tenha um fardo que a gente carrega. Sinto que ainda está muito enraizado em nós a ideia de que sexo é algo para ser servido ao outro para ser uma boa mulher. O que sinto é que, em geral, a dificuldade das mulheres com o orgasmo é muito maior no sexo. As mulheres que se autorizam a se estimular, se masturbar, em geral tem muito mais facilidade em ter orgasmos sozinhas porque não tem o olhar do outro, que traz o peso do julgamento, da vergonha, esses pesos que estão muito marcados no nosso corpo.

Em um vídeo no Instagram do Prazer Ela publicado recentemente, você fala em pressão por gozar. De onde vem? Por que estamos nos sentindo pressionadas?
A pressão por gozar vem porque a nossa sociedade funciona na dinâmica do rebanho, da moda, da tendência. Se agora a moda é falar sobre orgasmo, sobre como é o seu orgasmo, sobre a potência do seu orgasmo, me sinto pressionada a viver essa experiência de que está todo mundo falando, a comprar um vibrador. Sinto que a pressão vem muito do sistema que se apropria dessas pautas, que surge como um processo de libertação das mulheres.

Então, mulher boa é mulher que tem um vibrador, que gosta de falar sobre isso, desinibida, que tem os seus orgasmos. Já a mulher que não se autoriza é uma mulher que não está na moda, que não está na tendência.

O orgasmo entrou na lista do que é ser uma mulher gozante, empoderada, que sabe sobre o seu prazer. E aí todo mundo vai querer se enquadrar no estereótipo dessa nova mulher.

Essa pressão influencia no orgasmo?
Pressão só atrapalha, nunca ajuda. Ativa os gatilhos do medo, do julgamento, da tensão. E orgasmo é, antes de mais nada, relaxamento.

Só consigo me autorizar a viver aquela descarga orgástica se, antes, tem um período de relaxamento dessa parte do cérebro que se chama neocórtex, que é a racionalidade, a necessidade de se enquadrar.

A pressão faz com que aumente a tensão no meu neocórtex que impede o gozo.

Ainda assim, não é melhor que estejamos falando sobre sexo do que sofrendo com entendimentos ultrapassados de relação sexual, de corpo, de tesão? Mulheres podem conversar entre si e aprender muito sobre sexo.
É essencial encontrar espaços seguros em que, finalmente, depois de séculos de opressão, a gente possa falar sobre o que sente, o que vive, nossas dificuldades. Esse processo de elaboração, que depende de um espaço seguro para trocar, é fundamental para se permitir a vivência sensorial. A cabeça faz parte do corpo, e a mente é uma porta que abrimos ou fechamos quando nos dispomos a transformar dúvida, sensações e medo em palavras.

Quanto mais tempo vivo, quanto mais leio, mais entendo a existência feminina como um processo de desconstrução e reconstrução de quem a gente é. Poderia encher esse processo de adjetivos, o que empobreceria o texto. Mas arrisco: longo, talvez interminável, dolorido, prazeroso, custoso, necessário, libertador. Fomos educadas com base em entendimentos hoje ultrapassados sobre sexo e relacionamentos amorosos. Bases moralistas que nos subjugam e reprimem. Gerações e gerações de homens aprenderam que sexo é o que eles veem em filmes pornô. Gerações inteiras de mulheres iniciaram sua vida sexual com esses homens e tantas se casaram com eles. Levando em conta que, em geral, os pornôs não consideram nem o prazer da mulher, o que precisa mudar para o sexo ser bom para nós?
O caminho da transformação é a gente desaprender. É um caminho de aprender que é sexo para além da penetração, para muito além desses referenciais que são muito distantes da realidade. Reaprender sexo sob a perspectiva da troca íntima, troca emocional, despertar sensações, emoções.

É conexão, toque, afeto, aprender a transar sem usar genitais. Sinto que o caminho é esse para a gente poder engrandecer e potencializar a vivência da sexualidade.

O que é potência orgástica e o que ela tem a ver com essa ressignificação do sexo?
Quando a gente acessa a nossa potência orgástica, que é essa capacidade de sentir profundamente a entrega do corpo, o descontrole, o prazer nas vísceras, o corpo todo entregue para as sensações, a gente desperta para uma outra relação de autoestima, que não vem mais de fora, mas do reconhecimento dos mares internos.

Falo aqui de relação heterossexual. Essa dinâmica é diferente quando falamos de relação homossexual entre mulheres?
Pode ser diferente, mas também pode ser igual. Porque a gente está falando de seres humanos que foram atravessados por referenciais muito similares de performance, de querer agradar, de se submeter à vontade do outro... Mas é óbvio que quando a gente fala de duas mulheres se relacionando entram muitas outras possibilidades que não são tão baseadas na cultura do falo, do machismo, ainda que tenha algumas manifestações, sinto que essa possibilidade de vivenciar um sexo não falocêntrico é muito mais fácil entre duas pessoas com vulva, que têm muito mais disponibilidade de entender o sexo para além de "chave-fechadura", como uma troca de afetividade.

Falar publicamente sobre sexo, sobretudo mulheres, ainda é visto como tabu?
Falo sobre sexo e sexualidade há bastante tempo e vejo o quanto isso mudou. Há cinco anos, recebia propostas indecorosas dos caras achando que eu estava me prostituindo pelo fato de falar sobre prazer feminino. Hoje já não sinto mais isso, basicamente porque essa pauta entrou na moda.

Para ler: "O Sexo Segundo Maïa", as melhores crônicas da sexpert francesa Maïa Mazaurette, Ed. Oficina Raquel. Maïa é colunista do jornal francês "Le Monde" e não escreve, desenha.

"O Prazer Hoje", de Universa, de setembro de 2021, com dados sobre sexualidade feminina e quatro mulheres falando sobre suas experiências.

Para ouvir: "Na Morada 05 - Sexo na Morada" - Mariana Stock e outras mulheres falam sobre vários aspectos que envolvem a sexualidade neste episódio da série que eu e Laura Cassano fizemos sobre mulheres que moram sozinhas.

"Me Toca", Marina Sena.