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Nina Lemos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Primeira-dama da Ucrânia perde noção ao dar uma de Nana Gouvêa na Vogue

Olena Zelenska, primeira-dama da Ucrânia, posa para a capa da revista de moda "Vogue" - REPRODUÇÃO/INSTAGRAM/VOGUE/ANNIE LEIBOVITZ
Olena Zelenska, primeira-dama da Ucrânia, posa para a capa da revista de moda 'Vogue' Imagem: REPRODUÇÃO/INSTAGRAM/VOGUE/ANNIE LEIBOVITZ

Colunista de Universa

28/07/2022 13h48

A moça na capa da revista "Vogue" é muito bonita e tem os cabelos loiros cuidadosamente penteados. A maquiagem é clean. E, trajando uma calça jeans e uma blusa de seda, ela passa a imagem de um glamour chique e despojado.

Tudo isso seria normal e mais uma capa da revista de moda mais famosa do mundo, não fosse a moça bonita da capa a primeira-dama da Ucrânia, Olena Zelenska. E não fosse a Ucrânia um país que está no meio de uma guerra, sendo destruído.

Olena é capa da edição de outubro da "Vogue América", mas algumas fotos, assim como imagens de bastidores, foram disponibilizadas online.

Segundo a ONU, cerca de 5 mil pessoas já morreram no conflito e cerca de 5 milhões de refugiados escaparam do país.

Não é novidade que a moda vez ou outra glamouriza tragédias e miséria. Mas, desta vez, eles foram longe demais. Zelenska posa como modelo em Kiev, a cidade centro da guerra. Ela chega a posar para fotos usando um sobretudo marinho, fazendo cara de triste, tendo como cenário um avião destruído no aeroporto internacional do país. Ao seu lado, estão soldadas ucranianas.

As fotos foram feitas pela renomada fotógrafa Annie Leibovitz. E Olena Zelenska, diz a revista, optou por misturar designers ucranianos com nomes da moda para "montar os looks". E sim, gente, ela usou esses modelos para literalmente posar pisando em sangue.

Há 10 anos, Nana Gouvêa causou escândalo e virou piada no Brasil por fazer um ensaio em meio aos estragos causados pelo furacão Sandy, nos EUA. O que Olena faz não deixa de ser parecido. Só que ela é a primeira-dama. E, claro, a decisão não é só dela, mas do departamento de comunicação do país e da revista.

Depois dessa, fica difícil saber o que mais pode ser glamourizado.

Talvez a "Vogue", junto com a família Zelensky, tenha atingido um fundo do poço e seja difícil descer mais.

Se bem que, do jeito que o mundo anda, eles também podem resolver, por exemplo, usar vítimas da fome e da tragédia climática como cenário.

O fim do mundo será fotografado com modelos usando roupas de luxo.

No caso de Olena Zelenska, ela e o marido, o presidente que virou herói mundial, Volodymyr Zelensky, desrespeitam a população da Ucrânia, tão sofrida no meio de uma guerra. E também o mundo, já que essa guerra tem consequências em outros países. A Europa, por exemplo, se prepara para um longo inverno com falta de energia.

A publicação mostra também os dois juntos, em uma sala do palácio. O cenário é chique e os dois, apesar de não sorrirem, parecem galãs descolados.

Vendo as fotos, me lembrei das mulheres ucranianas que entrevistei na estação central de Berlim, para onde, desde o início da guerra, mulheres e crianças fogem todos os dias (os homens são obrigados a ficar no país). Algumas delas nem conseguiam dar entrevista, de tão abaladas —só conseguiam chorar. Elas tinham cara de assustadas, carregavam filhos pequenos, puxavam seus animais de estimação e iam se abrigar em campos de refugiados ou na casa de estranhos. Era tudo muito triste.

Não dá para não tentar imaginar o que essas mulheres vão sentir vendo essas fotos: parece que o presidente e a primeira-dama riem de suas dores.

Quer dizer, na verdade, eles riem de fato. No Instagram da "Vogue" há uma imagem de bastidores. Nela, o presidente e a primeira-dama aparecem rindo em um set de filmagens. Como trilha sonora do "reels", a "Vogue" escolheu uma música suave.

E a entrevista?

A primeira-dama deu também uma extensa entrevista para a publicação, na qual fala dos desafios que enfrenta, do medo de viver ameaçada e sobre o seu trabalho. Nos primeiros meses da guerra, ela ficou escondida. Agora, tem papel ativo divulgando os horrores do conflito em seu país. Recentemente, ela viajou para os Estados Unidos, onde pediu apoio para o congresso e teve encontros com a primeira-dama Jill Biden e com o presidente Joe Biden.

Dá para entender a importância de ouvir a primeira-dama e também que ela use a revista para divulgar os horrores de uma guerra. Mas ela podia ter feito isso sem posar em meio a escombros e glamourizar a guerra, um dos maiores horrores da humanidade.

Não há nada de bonito em uma guerra. Há apenas tristeza, desamparo e destruição.