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Nina Lemos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Cena racista do "É de Casa" choca, mas é rotina em muitos lares brasileiros

Colunista do UOL

14/06/2022 14h26

A cena que viralizou na internet é chocante, mas quase todas nós, mulheres brancas de classe média, já vimos algo parecido acontecer, seja nas nossas casas ou na de uma avó, uma amiga.

Em um quadro do programa "É de Casa", exibido sábado na TV Globo, a apresentadora Talitha Morete recebeu uma senhora que ensinou a fazer cocada ao vivo. Silene, uma mulher negra, estava sentada junto com os outros convidados e tudo parecia "normal". Até que a apresentadora disse: "Agora, Silene, a dona da cocada, vai fazer as honras da casa e servir todo mundo. Por favor". Sim, ela deu uma ordem e tratou uma convidada de seu programa, uma mulher negra, como nossas avós tratavam suas "empregadas": "Vai servir as pessoas!". Quando falo em "nossas avós" não estou sendo cruel com nossas antepassadas, mas boazinha.

A verdade, e Thalita provou isso, é que muitas mulheres brancas ainda acham normal "ter" empregadas domésticas e muitas as tratam dessa maneira aí mesmo, mandando servir. Em outras palavras, ainda são racistas, apesar de afirmarem que não são.

Mas é ou não racismo achar que todas as mulheres negras são suas "empregadas"? É racismo, claro. E infelizmente é muito comum.

No caso do programa, a apresentadora ainda deu outra aula de como o racismo estrutural opera. Depois de "dar a ordem" para Silene, ela a abraçou e disse: "Ah, sua linda", e deu um beijo na senhora, como se ela fosse uma "fofinha". Ela faria o mesmo se fosse uma senhora branca? Provavelmente não.

"As mulheres brancas velhas são tratadas como aposentadas na melhor idade. Os homens brancos heterossexuais velhos são lidos como experientes, os donos da lancha, indivíduos de credibilidade nas decisões políticas, enquanto nós, mulheres negras, envelhecemos sendo infantilizadas", escreveu a pesquisadora e escritora Carla Akotirene Santos no Instagram.

No programa de TV, Silene foi salva de atuar como empregada da madame pelo apresentador Manoel Soares, um homem negro. Ele tirou o prato da mão dela e passou a servir os convidados.

Manoel teve uma incrível presença de espírito e foi rápido. Mas os brancos nada fizeram. No fim, ficaram sentados, sendo servidos por um negro, agindo como se para eles isso fosse o normal. E não é?

A cena parece absurda. Mas o pior é pensar que esse tipo de coisa ainda acontece diariamente em milhares de lares do Brasil, um país racista e desigual, o campeão mundial no número de domésticas segundo a OIT (Organização Internacional do Trabalho). E, de acordo com estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) 68% delas (mais de 6 milhões) são mulheres negras.

"Minha funcionária"

Há poucas semanas, eu estava em um salão de beleza de classe média em Botafogo, na zona sul do Rio de Janeiro, quando ouvi a conversa de minha vizinha de lavatório. Ela era uma mulher jovem, de menos de 40 anos, e falava com a maior tranquilidade para a cabeleireira. "Meus filhos contam mais coisas para a MINHA funcionária do que para mim." Ela falava, claro, sobre a babá das crianças. Ela, a madame, contava com orgulho que TINHA uma "funcionária" para servi-la.

É revoltante. Por isso nós, da classe média branca, deveríamos assistir a cena que aconteceu no "É de Casa" várias vezes. Só para ver se não estamos repetindo o mesmo modelo racista nas nossas casas. E também para sentir vergonha.