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Nina Lemos

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que os ataques à Amber Heard nos ensinam sobre ódio contra as mulheres

Processo de difamação entre Johnny Depp e Amber Heard capturou atenções nos EUA - GettyImages
Processo de difamação entre Johnny Depp e Amber Heard capturou atenções nos EUA Imagem: GettyImages

Colunista de Universa

24/05/2022 04h00

"Amber Heard é uma vaca. E pode xingar de vaca sim, ela não está vendo". O diálogo, de "humor", foi feito no programa "The Noite" por Danilo Gentili e Roger Moreira, famosos defensores do politicamente incorreto. Danilo, inclusive, já foi processado por atos misóginos contra mulheres várias vezes.

O vídeo dos comediantes roda no TikTok, onde faz sucesso junto com todo tipo de conteúdo horrível contra a atriz. Várias influenciadoras, por exemplo, mostraram como Amber Heard teria fingido ter apanhado de Depp com ajuda de maquiagem, há montagens dela como um monstro e por aí vai.

Amber Heard, para quem estava em Marte e não sabe, protagoniza junto com Johnny Depp o julgamento do ano, ou da década. Os dois estão em corte nos Estados Unidos por um processo de calúnia e difamação. Eles tiveram um casamento para lá de conturbado, cheio de abuso, pelo jeito, de ambos os lados, que durou cerca de um ano. Eles se separaram em 2016 e logo Amber pediu uma ordem de restrição contra o ex.

Em 2018, Amber escreveu um artigo no jornal "Washington Post" falando ter sido vítima de violência doméstica. O nome de Johnny não estava no artigo, mas, mesmo assim, ele a processou por calúnia e difamação. Ela o processou de volta pelo mesmo motivo. Depp pede uma indenização de 50 milhões de dólares. Ela pede 100 milhões.

De fato, a carreira de Johnny Depp sofreu reveses terríveis. Os mais sérios: ele perdeu seu trabalho na sequência dos filmes "Piratas do Caribe" e "Animais Fantásticos".

Corta para 2022.

O julgamento, que começou em abril, está marcado para terminar dia 27 (sábado), mas o veredicto do caso já foi dado pelas redes sociais, que estão em transe. Pessoas do mundo todo assistem o julgamento, que começou em abril, com fascínio e paixão. E o veredicto é claro: Amber é uma mentirosa.

Mais que isso, ela é uma "praga", uma "vaca", uma "bruxa", uma "vadia" e todas as outras palavras misóginas que você pode imaginar. Todas as palavras que pessoas como Danilo Gentili e Roger Moreira vinham usando com cuidado foram liberadas no caso de Amber. Em se tratando dela, o apedrejamento foi liberado no maior modelo vale tudo.

Escrever sobre o caso é complicado porque rapidamente os fãs de Depp aparecem falando: "você não viu todo o julgamento". Então, vamos lá, não, não vi todo o julgamento. E não é disso que falo aqui. Esse texto não é uma peça sobre quem está errado ou certo na disputa do ex-casal.

Da minha parte, acho que os dois foram tóxicos, que houve abuso dos dois lados e que eles viveram um inferno. Deixo o veredicto de quem praticou calúnia e difamação para os juízes.

Meu ponto aqui é: Amber Heard virou uma espécie de esgoto de toda misoginia do mundo. Parece que foi liberado todo o ódio às mulheres que estava preso na garganta de alguns, desde que o feminismo virou pauta e movimentos como o "Me too" provocaram revoluções em Hollywood.

Não por acaso, homens misóginos e de extrema-direita estão fazendo a festa. Segundo um levantamento da "Vice World News", o site "The Daily Wirde", do ícone da extrema direita americana Ben Shapiro, teria gasto entre 35 mil e 47 mil dólares promovendo notícias negativas contra Amber.

Mulher é "tudo vaca"?

A atriz, basicamente, virou um símbolo de que mulheres são mentirosas, pragas, vacas, vadias que querem destruir a vida de homens.

O caso é perfeito para fazer com que milhares de mulheres vítimas de abuso deixem de denunciar seus agressores (ainda mais se eles forem famosos).

"Mas a culpa é de Amber, que mentiu", dizem. De fato, se ela inventou um monte de coisa, ela cria um problema para todas as mulheres que são agredidas diariamente. Se ela exagera, ela presta, sim, um desserviço.

Mas, curioso, a fúria contra ela não tem vindo de pessoas que se preocupam com a violência contra a mulher. Essas, pensam seriamente sobre o caso e suas implicações, mas não saem por aí jogando na fogueira e gritando: "queima", '"queima".

A imprensa americana já parece ter se dado conta disso. A revista "Vogue", por exemplo, publicou um artigo com o título, "Por que é a hora de acreditar em Amber Heard". O texto diz, entre outras coisas, que "independentemente do que Heard sofreu ou não nas mãos de Depp, o meme implacável dela não é uma forma de violência em si? A surra das redes sociais não é um tipo de agressão psicológica? Não estamos testemunhando um julgamento de bruxa moderna?", pergunta a jornalista Raven Smith em um artigo de opinião.

Concordo totalmente. Talvez seja tarde demais, mas seria bom se o sentimento de comoção e justiçamento fosse deixado um pouco de lado e a gente deixasse a "justiça" na mão do júri e do juiz que cuida do caso.

Mas, pelo jeito, o resultado do júri nem é importante para todos que fazem memes, vibram e acompanham o julgamento online. Pelo jeito, o que vale é aproveitar a oportunidade pra gritar que "mulher é tudo vaca" (tinha uma música com esse refrão na minha adolescência, e ela tocava no rádio).

É para esses tempos que queremos voltar?