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Nina Lemos

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Mulheres que lutaram contra ditadura em 68 voltam às ruas contra Bolsonaro

Martha Alencar, de bengala, com a amiga Bete Carvalho: as são amigas desde as manifestações de 68 - arquivo pessoal
Martha Alencar, de bengala, com a amiga Bete Carvalho: as são amigas desde as manifestações de 68 Imagem: arquivo pessoal

Colunista de Universa

02/07/2021 04h00

Desde que a pandemia começou, a jornalista Martha Alencar, de 81 anos, mal saiu de casa. "A única coisa que eu fazia era sair para caminhar porque tenho que me exercitar por causa da minha artrose."

Depois de tomar a segunda dose da vacina, ela finalmente deu uma volta com os netos. No dia seguinte a esse passeio, ela foi a seu primeiro grande evento: a manifestação contra Bolsonaro do dia 19 de junho, no centro do Rio de Janeiro. Junto com uma das filhas e trajando uma camiseta onde estava escrito "Geração 68 na luta", ela foi para as ruas pedir o impeachment do presidente Bolsonaro. E pretende ir nesse sábado (3) e quantas mais vezes for necessário. "Nós, mais velhos, se pudermos, temos que ir, estamos mais protegidos que os mais novos porque já fomos vacinados", diz.

Martha faz parte de um grupo de pessoas que, com mais de 70 anos, e depois de já ter lutado contra a ditadura militar, volta a ocupar as ruas contra Bolsonaro. Eles são remanescentes da famosa "Geração de 68", aquela de jovens que lutaram por mudanças no mundo inteiro. No Brasil, esses jovens foram às ruas por liberdade e contra a ditadura militar. Um dos principais eventos dessa época, aliás, a "Passeata dos 100 mil", completou 53 anos semana passada. Martha estava lá. "Eu era jornalista e participava mais dos movimentos culturais. Ajudei a fazer uma faixa enorme junto com um grupo de estudantes", recorda.

Ir às manifestações, no meio de uma pandemia, é uma decisão consciente que, de acordo com Martha, pode até tornar o protesto mais poderoso. "Não foi igual esses protestos de apoiadores do governo, que as pessoas vão sem máscara. São pessoas que têm preocupação com a propagação do vírus. Todo mundo pensa muito antes de ir para a manifestação, todo mundo tem consciência dos riscos. O que aconteceu foi uma virada. Que é muito parecida com a virada de 68, quando as manifestações começaram a crescer — e vai crescer muito mais."

As semelhanças entre o momento atual e 68, segundo ela, são muitas. A principal delas é a reação que aconteceu após a morte do estudante Edson Luís (morto pela polícia militar em uma passeata em março de 1968). "Aquele episódio de um estudante assassinado atingiu todo mundo. Foi quando a classe média reconheceu que podia ser seu filho. Foi assustador. Agora, vários estratos sociais estão unidos de novo, não só pelas 500 mil mortes, esse horror, mas também por causa das constantes ameaças à liberdade de expressão anunciadas pelo governo o tempo todo", afirma.

Pressão popular

A dentista Marlene Barros da Fonseca com a filha Karen Black em uma das manifestações contra o presidente Bolsonaro - arquivo pessoal - arquivo pessoal
A dentista Marlene Barros da Fonseca com a filha Karen Black em uma das manifestações contra o presidente Bolsonaro
Imagem: arquivo pessoal

A dentista aposentada Marlene Barros da Fonseca, de 75 anos, é outra que não teve dúvidas e, munida de máscara pff2 e na companhia da filha, foi na manifestação do dia 19 assim como pretende ir hoje. "Com toda certeza". Marlene gosta das ruas, participou também do Fora Temer e de inúmeras outras manifestações. Durante a pandemia, se guardou, mas não aguentava mais a vontade de ir protestar. "Nós não temos outra saída. O que está acontecendo é muito sério. E só as ruas podem pressionar as instituições do Brasil, que são muito lentas. Essas denúncias de corrupção na compra de vacinas são chocantes e absurdas. Mas se não tiver povo na rua, não vai acontecer nada", diz.

A última manifestação foi também a primeira vez que Marta viu uma multidão em um ano e meio. "Foi muito emocionante. Eu e minha filha que foi comigo choramos muito. É muito bonito ver as pessoas velhas e jovens indo protestar em um momento desses. Isso dá esperança."

Segundo ela, algumas "amigas de passeata" que também são idosas não tiveram coragem de ir. "As pessoas estão muito inseguras ainda em relação à pandemia. E tem que estar mesmo, nada está controlado. Eu não aguentaria não ir, mas fui tomando muito cuidado", disse Marlene, que na época da faculdade de Odontologia também esteve presente na passeata dos 100 mil.

Apesar da emoção de voltar às ruas. Marta e Marlene estão um pouco chocadas de ter que voltar para as ruas para defender coisas que pediram mais de 50 anos atrás, como apoio à democracia e à liberdade de expressão.

"Não pensava que isso iria acontecer de novo, que a gente iria recuperar a democracia e estar em risco de perder tudo de novo. É tudo muito parecido. As faixas são um pouco diferentes. Na época, Era "Abaixo a Ditadura". Agora é "Fora Bolsonaro". "Como eu poderia imaginar que estaria tendo que protestar contra o fascismo agora, que já tenho até bisneto?", pergunta Martha.

Em vez de ficar apenas se perguntando ou lamentando elas decidiram ir para as ruas.