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Nina Lemos

Caso Melhem: "União de vítimas foi essencial pra denúncia", diz Manu Miklos

Colunista do UOL

04/12/2020 13h23Atualizada em 04/12/2020 15h39

Mais de 15 mulheres. Esse é o número de funcionárias da Globo que acusam assédio sexual por parte do então diretor de Núcleo de Humor da empresa, Marcius Melhem. O cálculo foi feito pela representante dessas mulheres Manoela Miklos, do grupo "Agora é que São Elas", e pela advogada criminalista Mayra Cotta. As duas foram chamadas para aconselharem as vítimas e organizarem as denúncias contra o diretor.

Em conversa com esta coluna, Manoela e Mayra contaram que as atitudes do ator, incluíam, entre outras coisas, colocar o pênis para fora no meio do ambiente de trabalho. Segundo elas, existia também uma grande dose de abuso emocional e moral. A dupla também falou sobre as expectativas a partir das denúncias feitas internamente e pela imprensa. Detalhes do caso foram divulgados pela primeira vez por Mônica Bergamo na Folha de S Paulo, em outubro. Hoje, a revista Piauí divulgou uma matéria com novas denúncias contra Marcius Melhem, em especial, uma acusação de assédio contra Dani Calabresa.

Melhem foi afastado da Globo provisoriamente em março, por motivos pessoais, e demitido em agosto. Na ocasião, a empresa divulgou nota elogiando o humorista e agradecendo pela "parceria de sucesso".

Esse resultado deixou o grupo insatisfeito. Durante a entrevista, a advogada e a ativista reforçaram também a coragem das mulheres de denunciar e como o processo se desenrolou. Foi a união dessas mulheres que deu força à denúncia:

"Quando elas se deram conta da gravidade do que estava acontecendo ao redor delas, e sabendo que eu já tinha atuado no caso do José Mayer, me chamaram para conversar. Esse grupo foi crescendo. Em conversas, elas começaram a lembrar de outros nomes. 'E aquela com quem ele cismou uma época? Onde ela está? Vamos achar!'. Elas fizeram essa coisa forense mesmo, de puxar os casos, de ter conversas dolorosas. Elas foram muito corajosas", conta Manoela.

Segundo elas, além do assédio, Marcius fazia ameaças que as deixavam acuadas para fazer qualquer tipo de denúncia e, justamente por isso, até o momento não se sentem seguras de revelar suas identidades. "As mulheres não se sentem seguras para falar. Marcius se colocava como o responsável pela carreira deles. Então muitas diziam, 'ele fez essas coisas, mas ele é um cara que me ajudou também' e se sentiam culpadas de denunciar", afirma a advogada, que traça um paralelo do caso com os de violência doméstica.. "Existem sentimentos envolvidos. Não é uma pessoa que passou na rua e te agarrou. É alguém com quem você tem uma relação antiga, de afeto. São pessoas que estão marcadas. Sofreram muito. Mas até hoje, ainda acham que precisam ser gratos a ele", afirma Mayra.

Dani Calabresa

Para Manoela e Mayra, a denúncia de Dani Calabresa foi a grande virada do caso. Ela, também nome grande da Globo, teve coragem de expor tudo que já acontecia havia alguns anos nos bastidores. "Quando surge o caso da Dani, o caldo entorna. O poder dele encontra uma pessoa que é páreo para ele. Alguém que ele não tem como demitir, não tem como fazer algo. Isso é muito comum em casos de assédio. É o momento em que ele encontra, por uma convergência de fatores, alguém que consegue dar uma resposta e ele perde um pouco o controle com isso. Foi a primeira vez que soubemos que ele usou a violência física", afirma Mayra Cotta.

Durante o processo, Dani sofreu acusações muito comuns de mulheres que trazem à tona casos de assédio.

"Ele não podia demiti-la. Mas no momento em que ele soube que ela tinha levado o caso à direção da empresa, ele começou uma campanha de intimidação fortíssima. Do tipo, a Dani bebe, ela não lembra, ela toma remédio. Ele fez uma campanha de 'a Dani é louca'", disse Manoela.

Globo não reagiu como esperado

Todas as denúncias foram feitas ao setor de compliance da Globo. De acordo com a reportagem da Piauí, a reação da emissora foi decepcionante.

"É chocante ver como a direção de uma empresa tão grande ainda tem um entendimento tão parco, e diz coisas como, 'mas foi numa festa...' ou 'ah, mas foi no flat? Então não foi no trabalho.' Mas, espera, você está nesse flat porque o seu chefe, seu editor, te mandaram ficar lá. É tudo complicado e não houve esse entendimento", diz Manoela Miklos.

A reação da Globo deixou as mulheres acuadas.

"As mulheres que foram vítimas de assédio sexual ainda têm muito medo dele, dele se vingar, de prejudicá-las. Ele é uma sombra constante. As que foram testemunhas ou vítimas de assédio moral tem medo da Globo, Manoela.

Mexeu com uma, mexeu com todas

As mulheres que continuam funcionárias da emissora carioca querem apenas um diálogo produtivo com a empresa e uma narrativa pública sincera sobre o caso. Após a matéria da Piauí, a expectativa é que se reforce um ambiente de trabalho seguro, construído em cima de uma versão honesta dos fatos.

"As mulheres estão muito próximas, muito unidas. Mulheres que antes não se falavam. Esse tipo de estrutura se alimenta de romper vínculos. Se essas mulheres trocam, dialogam, cai esse pano. Tem uma experiência muito bonita de construção de vínculo. E muito do que elas achavam que eram rusgas, pequenos desentendimentos, eram criados pela estrutura do Marcius. É bonito ver a restauração das relações", diz Manoela Miklos

O que querem as mulheres que fazem as denúncias

Após as denúncias, Manoela e Mayra mandaram novas mensagens à coluna. Juntas escrevem o seguinte:

"Acreditamos que ainda há duas dimensões dos avanços que precisam acontecer: reparação e responsabilização. Estamos acompanhando o quanto as empresas em geral ainda estão errando na forma como lidam com casos de assédio sexual. Demitir o abusador e fingir que nada aconteceu não adianta. Um chefe assediador deixa para trás uma verdadeira terra arrasada. O ambiente tóxico de trabalho não será automaticamente substituído por um em que todas se sintam seguras e confortáveis para trabalhar. Os traumas pessoais das vítimas não vão magicamente desaparecer.

O assédio sexual precisa ser devidamente reparado e essa reparação passa primeiramente pelo reconhecimento de que as vítimas passaram por algo sério, que deveria ser inaceitável.

Por enquanto, não tem um processo. A gente acha que, como é uma ação penal pública incondicional, qualquer promotor pode instaurar um inquérito penal. Da parte delas, por enquanto, não há. Mas estamos preparadas, se houver um litígio."

O que diz a rede Globo

A coluna perguntou para a Globo se as mudanças recentes no departamento artístico estavam relacionadas com o caso e quais eram as atitudes tomadas pela empresa. Leia abaixo a resposta do departamento de Comunicação da Globo.

"As movimentações recentes no Entretenimento nada têm de relação com o assunto. São decisões planejadas com antecedência, que fazem parte do processo de transformação digital da Globo, sendo leviana qualquer associação com o caso.

Quanto às questões de compliance, a Globo não as comenta, mas reafirma que todo relato de assédio, moral ou sexual, é apurado criteriosamente assim que a empresa toma conhecimento. A Globo não tolera comportamentos abusivos em suas equipes e incentiva que qualquer abuso seja denunciado. Neste sentido, mantém um canal aberto para denúncias de violação às regras do Código de Ética do Grupo Globo. Por esse Código, assumimos o compromisso de sigilo do processo, assim como o de investigar, não fazer comentários sobre as apurações e tomar as medidas cabíveis, que podem ir de uma advertência até o desligamento do colaborador. Mesmo nas hipóteses de desligamento, as razões de compliance não são tornadas públicas.

Somos muito criteriosos para que os estilos de gestão estejam adequados aos comportamentos e posturas que a Globo quer incentivar e para que as medidas adotadas estejam de acordo com o que foi apurado. Não foi diferente nesse caso. O acolhimento e a empatia com quem relata situações de violação do Código de Ética são pontos essenciais do programa de compliance da empresa.

Isso não quer dizer que os processos de compliance sejam estáticos. Ao contrário. Eles evoluem constantemente para acompanhar as discussões da sociedade. As práticas e as avaliações são revistas o tempo inteiro, assim como são propostas e acolhidas sugestões de melhoria nos mecanismos de comunicação interna. A própria sociedade está se transformando e a empresa acompanha esse processo."

O que diz Marcius Melhem

Procurado pela Piauí, Melhem mandou a seguinte nota:

"Quando recebi as perguntas da revista piauí, percebi que a sentença já estava dada. Então, nada que eu diga sobre fatos distorcidos ou cenas que jamais ocorreram vai mudar esse perfil construído de abusador, quase psicopata.

Qualquer pessoa que tenha convivido comigo sabe que eu jamais cometeria algum ato de violência e que nunca forcei ninguém a nada. Mas parece que o único objetivo está sendo bem-sucedido: a minha condenação na opinião pública.

Quero pedir desculpas a pessoas que eu magoei, mas sequer tive o direito de saber quem são elas. O mundo mudou, comportamentos antes naturais estão sendo revistos, e todos precisamos aceitar as consequências de nossos excessos.

Venho há um ano trabalhando esse entendimento e estou disposto a assumir qualquer erro ou dano que tenha causado. Mas é preciso que a conversa seja transparente, sem omissões, mentiras ou distorções sobre as relações. É o que eu vou buscar: justiça."