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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O dia que fraturei o quadril correndo a São Silvestre

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Imagem: iStock

Colunista de Universa

13/05/2022 04h00

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Começar a correr não foi uma grande decisão. Estávamos no sítio, e a Martha, esposa do meu pai, tinha levado uma revista que eu jamais abriria se não estivesse largada no sofá. Na capa, o anúncio de uma lista: cinquenta razões para correr. Eram tão boas as razões que eu decidi dar uma chance e esconder a bandeira do sedentarismo que eu hasteava cotidianamente desde a adolescência.

Dentre os motivos que me fisgaram, aqueles que diziam que bastava um par de tênis e a corrida caberia na minha vida de puérpera, me faria sentir melhor e ainda me ajudaria a caber de novo nas minhas roupas que os 30 quilos adquiridos na gravidez confinavam no fundo do armário.

Comecei, na praça perto de casa. Eu não tinha pulmão suficiente para trotar uma volta no quarteirão, então andava uma quadra e corria uma. Na semana seguinte, duas. Depois três. Depois o quarteirão inteiro, e fui aumentando as voltas, entre uma e outra mamada do meu primeiro filho.

Não era gostoso, mas me fazia, de fato, voltar para casa me sentindo melhor. Até que, quando consegui ultrapassar pela primeira vez os doze minutos sem alternar com caminhadas, uma mágica aconteceu.

Uma onda de prazer subiu pelo meu corpo, súbita, intensa, e me fez parar de olhar o relógio e contar as voltas para, pelo contrário, começar a barganhar comigo mesma: só mais uma. Só mais uma volta sentindo o suor escorrer deliciosamente, só mais uma, e eu volto para a minha vida, para o meu filho que me espera em casa.

De volta em volta, fui aumentando o ritmo e a resistência até perceber que alcançava um estado meditativo, do qual começava a necessitar no dia a dia.

Um fim de tarde, tomada de angústia, decidi correr ao redor da pracinha. Eu tinha acabado de me separar e me sujeitava, de novo, ao cruel mercado de afetos. Coloquei David Bowie nos fones de ouvido e fui dissolvendo a angústia com suor, sem prestar muita atenção na distância percorrida, correr até dizer chega.

Fiz as contas no fim: foram treze quilômetros. Escrevi para a Martha contando. A resposta dela: que legal, você já pode treinar para uma meia maratona.

Assim foi. Alguns meses depois, meu pai, minha irmã, meu filho e a Martha me esperavam na chegada feliz dos 21 quilômetros na orla do Rio de Janeiro. Eu tinha acabado de fazer 30 anos, e talvez por isso meu corpo tivesse aguentado tudo aquilo sem reclamar e sem que eu tivesse feito um exercício sequer de musculação.

Mas a prova seguinte não foi bem assim. No último treino antes da São Silvestre, uma pequena fisgada na virilha. Não dei muita atenção, mesmo que uma dorzinha aparecesse até quando eu andava. E lá estava eu, no dia 31 de dezembro, dentre a multidão na Paulista.

Na descida do Pacaembu, logo no começo, a dor se intensificou, e foi piorando quilômetro a quilômetro. Lembro de olhar a placa do oitavo e lamentar que ainda faltassem sete, não pelo cansaço, eu queria aquele cansaço, mas a dor que me assaltava a cada passada da perna esquerda me impedia de chegar nele.

Os transeuntes que torciam, entusiasmados, tentando animar os corredores que se arrastavam, passaram a me irritar: não era falta de ímpeto, eu não conseguia ir mais rápido.

Três dias depois, quando peguei o resultado da ressonância magnética, me surpreendi com minha incapacidade de parar: eu havia fraturado o osso do quadril por estresse.

Desistir não constava dentre as possibilidades que se dispunham para mim, eu sequer havia pensado nisso, o que era mais que um indício da minha dificuldade em aceitar limites, inclusive os do meu próprio corpo.

Teria sido simples, interromper a prova, e eu evitaria a dor descomunal que me impedia de chegar andando até minha casa, de sequer ficar em pé para tomar banho. Como alguém termina uma corrida nessas condições? Que desrespeito comigo mesma e falta de noção era aquela?

Meu quadril nunca mais foi o mesmo. Fiquei anos sem correr, e toda vez que tentava, algo doía. Aquele dia desbalanceou meu corpo de alguma forma para sempre.

Há alguns meses, tomei coragem de novo, mas primeiro me matriculei numa academia — a idade traz, enfim, algum aprendizado. Depois de algumas semanas, comecei a trotar. Ah, quando cheguei aos doze minutos. Só mais uma. Só mais uma.

Agora, a vitória não é aumentar o tempo ou a distância, mas correr sem dor. Correr para poder continuar correndo. Para poder continuar desfrutando do estado meditativo no qual tomo boas decisões, no qual tenho ideias para textos, no qual pensei inclusive em escrever este.

Aquele estado de suor mágico que me devolve em seguida para a minha vida, a mesma vida, mas que passa a ser completamente outra. David Bowie nos fones de ouvido. Os problemas ali, mas dissolvidos, menores, talvez então do tamanho certo. E a consciência de que meu corpo é sempre, ao mesmo tempo, meu tesouro e a possibilidade de minha tragédia.