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Natalia Timerman

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Culpada, segundo a lei: um texto sobre aborto no Brasil

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Imagem: iStock

Colunista de Universa

22/04/2022 04h00

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Se você levar nove minutos para ler este texto, durante este tempo uma mulher terá morrido por ter feito um aborto clandestino. Provavelmente, essa mulher será do hemisfério sul, de um dos países onde abortar ainda é ilegal —não por coincidência, em sua maioria, países subdesenvolvidos. Ela poderá pertencer a todas as classes, etnias e religiões, mesmo as praticantes de religiões que se pronunciam contra o aborto. Ou melhor: ela provavelmente será pobre, porque as mulheres ricas acabam tendo acesso, mesmo ilegalmente, a um aborto seguro —pois a clandestinidade atinge a todas que abortam fora da lei, mas só coloca em risco a vida das mais pobres.

No Brasil, como consta em posicionamento de 2013 dos próprios Conselhos de Medicina, "o abortamento é uma importante causa de morte materna no país, sendo evitável em 92% dos casos". Quando realizado de forma insegura, também custa caro à saúde pública: suas complicações são a terceira causa de ocupação de leitos obstétricos.

Diante desses dados, ser a favor da vida deveria significar ser a favor do aborto legal e seguro sempre que a contracepção falhe ou não aconteça, seja por que motivo for. O acesso a um meio digno de interromper uma gravidez não desejada deveria ser, com informação sobre riscos e sem julgamentos, um direito de toda e qualquer mulher. O que está, lamentavelmente, muito longe de acontecer no Brasil.

É por isso que, antes de começar a escrever, precisei consultar advogadas, reler o Código de Ética Médica, conversar com amigas e com meu companheiro. Este é um texto escrito com medo. Um texto que trata de um crime, ainda que já legalmente prescrito, ainda que segundo leis feitas por homens para legislar sobre a vida de mulheres. Mas é um texto também encorajado pela escrita de outras mulheres.

Seguro, aqui, nas mãos delas, na mão de Renata Corrêa, autora de "Monumento para a Mulher Desconhecida", publicado pela editora Rocco, que conta do aborto clandestino de uma amiga e do dela própria, aos 19 anos. Seguro na mão de Debora Diniz, cuja pesquisa mostra que uma em cada cinco mulheres brasileiras de até 40 anos já tinha, em 2016, feito pelo menos um aborto —você certamente conhece alguma delas.

Seguro na mão da professora que me deu o contato para um aborto seguro, depois de me perguntar: você tem certeza? Seguro na mão de Annie Ernaux, que em seu "O Acontecimento", publicado pela editora Fósforo, escreve quase 40 anos depois sobre a experiência de ter, sozinha, enfrentado um aborto clandestino. Ainda que minha escrita não possa se equiparar à dela: ela entende como condição da sua o fato de o aborto ter sido legalizado na França em 1975. Ela não estava mais falando de algo que ainda era um crime.

Eu estou.

Mesmo que me pareça algo tão diferente disso a experiência de me deitar em uma maca para ser submetida a um procedimento médico, o ambiente asséptico, tão distinto daquele a que recorrem milhares de mulheres menos privilegiadas do que eu, enfiando agulhas nas próprias genitálias, suscetíveis a infecções e hemorragias. Pois abortos acontecerão, sejam eles legais, em condições adequadas, ou não.

Minha escrita não se equipara à de Annie Ernaux também porque ela tinha absoluta certeza de sua decisão. Eu tinha três anos a mais que sua idade quando se submeteu ao aborto: ela que, "no amor e no gozo, não se sentia um corpo intrinsecamente diferente dos homens". Porque, sim, é claro, é óbvio, uma mulher sozinha não consegue instaurar uma gravidez, ainda que, quando indesejada, a responsabilidade recaia quase sempre sobre ela.

Eu não tinha certeza de que queria abortar. Minha mãe, com aquela idade, já tinha tido dois filhos. Mas deixou de trabalhar por um bom tempo depois de ter se tornado mãe. Eu estava começando a minha carreira, terminando minha formação.

Quando contei ao meu pai que estava grávida, pedindo seu conselho, antecipando a ajuda financeira que eu teria que lhe pedir, ele me disse que pensasse. Faríamos uma viagem em família, eu estava bem no começo da gestação, poderia refletir por algumas semanas.

Lembro de usar um vestido vermelho; lembro de pedir que meu companheiro da época voltasse para a pousada para dormir cedo comigo, em vez de ficar com a minha família noite adentro; lembro de não saber, de perceber que, ainda que o tempo passasse, não haveria elemento novo algum que me auxiliasse na decisão.

Não saber, um não saber puro, sem âncora. Não encontrava nem no meu corpo nem fora de mim nada nem ninguém que pudesse me oferecer uma resposta. Era eu, só eu, e a inércia na qual eu me via era já o pendor para um dos lados. Se eu não fizesse nada, um bebê nasceria.

Quando fomos à consulta agendada, eu não estava em jejum para o procedimento, que não poderia ser feito naquele momento. Perguntei quantas horas seriam necessárias: fiz as contas, perguntei se poderíamos voltar mais tarde, quando desse o tempo. Ficamos esperando numa lanchonete, sem assunto e sem alegria, as horas para cumprir o jejum.

Lembro de acordar gritando da anestesia, assustada, depois que tudo já tinha passado. Lembro que, nas semanas seguintes, comi demais, pudins, bolos, chocolates. Lembro de engordar em pouco tempo mais do que a gravidez me faria engordar. Lembro de olhar o filho de uma amiga que tinha ficado grávida na mesma época e pensar, por alguns anos, que poderia ter uma criança mais ou menos daquele tamanho.

Annie Ernaux se lembra da data exata de seu aborto, e escrevê-la "era uma necessidade ligada à realidade do acontecimento". Eu não me recordo mais do que ser janeiro de 2008 e de eu ter que pedir no trabalho que me cobrissem na minha ausência.

No dia seguinte, estava de volta, tinha que estar. Guardando um segredo. Culpada, segundo a lei, segundo o silêncio, segundo a desigualdade que me fez poder voltar ao trabalho no dia seguinte e não ser simplesmente enterrada depois de uma hemorragia ou uma infecção.

Hoje, tenho dois filhos. Quando penso naquele que não tive, o faço com o sentimento de que fiz valer mais que a renúncia: fiz valer o sacrifício, me dedicando ao futuro que voltou a se abrir, aos meus filhos, quando eles vieram —e que me reafirmam cotidianamente que ser mãe precisa ser uma escolha, não uma imposição.

E se escrevo este texto, é também no intuito de fazer valer minha experiência para outras mulheres; de, por minha vez, dar a mão a elas e acolhê-las por terem enfrentado, provavelmente sozinhas, o que Annie Ernaux chamou de acontecimento. Resta saber por quanto tempo, neste país patriarcal e retrógrado que é o Brasil, o aborto continuará matando as mulheres que optam por ele.